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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

"Se tem Libertadores e Sul-americana, por que não pode Copa América?"

Bolsonaro recebe camisa da seleção brasileira das mãos do presidente da CBF, Rogério Caboclo - Lucas Figueiredo/CBF
Bolsonaro recebe camisa da seleção brasileira das mãos do presidente da CBF, Rogério Caboclo Imagem: Lucas Figueiredo/CBF

Colunista do UOL

06/06/2021 11h57

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O título desse texto traz uma pergunta que tem sido feita com alguma regularidade por aí. É uma dessas perguntas que aparenta ser bastante razoável, mas que, se analisada um pouco mais a fundo, desmorona.

Se me perguntarem se os campeonatos de futebol deveriam estar acontecendo, eu diria que não. Não deveriam. Estamos vivendo o desafio de nossas gerações, chegando a 500 mil pessoas mortas por uma doença para a qual já existe vacina e descobrindo pela CPI como o governo de Jair Bolsonaro agiu deliberadamente para nos deixar morrer. É, sem dúvida, um dos períodos mais tristes de nossa história, que é uma história repleta de períodos de violências e de extermínios. Então, em respeito ao que estamos vivendo e a fim de mostrar à população que nada do que está acontecendo pode ser considerado normal ou aceitável, eu acho que não deveríamos estar jogando bola.

Mas estamos e, aos trancos e barrancos, demos um jeito de nos organizar dentro dessa realidade distópica. Por essa lógica, o que custaria trazer para o Brasil apenas mais um campeonato de futebol?

Aí a gente entra no lado mais sombrio dessa história. A Copa América, assim como a Eurocopa. Copa do Mundo e Olimpíadas, é um evento festivo, que existe para celebrar o jogo, o esporte e, portanto a vida. Não acontece todos os anos, e existe para que o jogo que amamos seja usado para fins de confraternização.

Não estamos, e aqui todos concordarão, em momento para festas. Estamos diante de uma crise sanitária e funerária sem precedentes. Todos nós lidando com medo de morrer e com a dor de perder aqueles que amamos. Que o presidente da República - que até agora não mostrou uma gota de solidariedade com nosso sofrimento, não visitou um hospital, não se revelou minimamente empático à dor dessa nação - queira sediar em caráter emergencial uma festa deveria ser chamado de afronta.

Se a agilidade que Bolsonaro está mostrando para reorganizar estruturas e sediar a Copa América tivesse sido aplicada para comprar vacinas no momento em que elas começaram a ser oferecidas, é bastante provável que já estivéssemos vivendo dentro de uma situação de alguma normalidade e pudéssemos, aí sim, ser os anfitriões da Copa América.

Mas a CPI está mostrando como ele agiu: ignorando ofertas de vacinas, criando um ministério paralelo para gerenciar a crise à base de cloroquinas e outros remédios ineficazes, dando os ombros para 70 milhões de doses ofertadas por uma das fabricantes. Setenta milhões de apenas uma fabricante. Quantos de nós teríamos deixado de morrer se Bolsonaro tivesse agido como um Presidente e não como um genocida?

Trazer a Copa América para o Brasil no instante em que chegaremos à marca de meio milhão de mortos é uma imoralidade, é indecente, é delinquente. É usar lógicas milicianas de relacionamento. É chamar todos e todas nós de imbecil. É matar outra vez nossos mortos. É pisar em nossas faces e em nossos peitos.

Como escrevi em outro texto, ainda pode haver alguém que tente argumentar que a Copa América promoverá a geração de empregos para uma série de trabalhos diretos e indiretos, e nessa hora a gente precisa se perguntar: a que custo? Gerar trabalhos sem um planejamento sanitário pré-estabelecido no meio de uma pandemia dentro do país que pior tem lidado com ela sob muitos e variados aspectos é argumento moralmente aceitável? A resposta é sim para aqueles que acreditam na dicotomia "a economia ou a vida" ou para aqueles que não precisarão expor seus corpos a riscos desnecessários porque ou já estão vacinados ou podem ficar em casa. Quem está preocupado em encontrar uma maneira de o trabalhador de baixa renda ter o que comer deveria estar lutando por auxílio emergencial decente, chamado à responsabilidade a outra ponta desse genocídio que está sendo executado via vírus, bala e fome: as políticas econômicas de Paulo Guedes.

Com tudo isso, espero ter conseguido responder satisfatoriamente à pergunta que está no título desse texto.