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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Futebol forma torcedores, mas não pode fugir de formar cidadãos

meninas jogando bola - Getty Images
meninas jogando bola Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

18/05/2021 16h07

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Alice tem oito meses e destino futebolístico praticamente decidido: Filha de pai e mãe são-paulinos, afilhada de padrinho são-paulino, cheia de primos e de primas são-paulinos por parte de pai - meu irmão. Alice ainda não sabe o que é o futebol, mas meu irmão, minha cunhada e eu, no papel de madrinha, já estamos tratando de transferir a ela esse conhecimento.

Como única corintiana do reduto, cabe a mim oferecer a ela alguma alteridade futebolística. Então, a paixão de Alice por um time está em disputa. Mas trata-se de disputa desequilibrada, convenhamos, porque sou uma ilha cercada de oceano tricolor. Ciente de que sou zebra, me inspiro nas tantas histórias de um tio ou de uma tia maluco que subverteram toda uma linhagem de torcedores de um certo time para fazer com que a sobrinha ou o sobrinho se encantassem pelo rival. Acontece nas melhores famílias.

Por causa de nossos esforços coletivos - o jogo é limpo -, Alice já levanta os bracinhos emite um som que se parece com um grito de gol. Não fica claro ainda qualquer tipo de tendência, mas ela já apreendeu que "gol" é grito de vida. Consideramos esse um importante começo.

Claro que eu adoraria que Alice se deixasse seduzir pelas cores alvinegras e me derreteria todas as vezes que fosse com ela a um jogo, mas cresci levando o sobrinho primogênito Paulo ao Morumbi - e até ao Maracanã para a semi da Libertadores de 2008 contra o Fluminense - e tenho consciência de que, mais importante do que a camisa escolhida, é o amor pelo jogo e por tudo o que ele pode oferecer o que realmente importa.

Outro aspecto fundamental dessa disputa pelo coração de Alice é a alteridade que está sendo mobilizada. Pensei nisso vendo o primeiro Fla-Flu da decisão do estadual desse ano pela FlaTV. Me perguntei que tipo de experiência o pequeno torcedor flamenguista, que agora começa a se familiarizar com o jogo, estaria tendo vendo aquela transmissão.

Estamos falando de uma criança que crescerá num mundo onde algoritmos decidem o que nos é oferecido como informação e como opinião. Essa criança será, assim, inundada de noticiário a respeito das coisas que gosta e de ideias que trabalhem para reforçar as suas. No dia-a-dia, para tudo o que importa, o contato com o diferente estará limitadíssimo.

Nossa sociedade, a cada minuto mais polarizada, está mimetizando a lógica binária de um computador, trabalhando para reforçar opiniões já existentes e corremos o risco de deixarmos de ver tons e nuances para focar nos extremos. Com o tempo teremos perdido a capacidade de enxergar pelas frestas, de escutar as pausas e não apenas os sons.

Não me entendam mal; a FlaTv é corretíssima e divertida. Eu, que não sou Flamengo e muito pelo contrário, tenho gostado de ver os jogos com a narração do competente Emerson Santos, comentários sempre lúcidos de Athirson e reportagem profissional de Luana Trindade. Os convidados, todos sempre flamenguistas e devidamente trajados, entram na onda e a gente acaba sendo presenteado com um bate-papo informal e ao mesmo tempo informativo. Não se espera parcialidade, claro, mas sobra integridade e isso é saudável. Ainda assim, o que falta é alteridade.

Se vez ou outra o torcedor rival fosse convidado para uma transmissão as coisas ganhariam em teor opinativo e ofereceriam a quem está em casa a ideia de que rivalidade não é inimizade. O garoto ou a garota que estão agora se apaixonando pelo jogo e pelo Flamengo seriam ofertados com ideias alternativas e com a noção de que nem tudo no mundo gira em torno da Gávea - ainda que os mais apaixonados pensem o contrário.

Para tudo na vida a alteridade importa, mas num mundo a cada dia mais binário importa ainda mais. O futebol cria o torcedor mas também tem a função social de formar o cidadão e a cidadã - e não deveria fugir dessa raia.

Espero que Alice acabe se encantando pelo Corinthians, mas, acima de tudo, espero que ela se encante pelo futebol. Que com o jogo ela possa enxergar a beleza de uma rivalidade saudável, a poesia que existe numa triangulação bem executada, a maciez do barulho de um chute feroz, de uma defesa improvável, da bola que estoura na trave. E que, por fim, possa tirar do futebol a mais valiosa das lições: ganhar é bom, mas perder é fundamental porque enquanto a vitória faz um dengo no ego a derrota forma caráter.