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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Minha mãe e eu dentro de um estádio com 140 mil pessoas

Final do Paulista de 1977 entre Corinthians e Ponte Preta, no Morumbi - Reprodução
Final do Paulista de 1977 entre Corinthians e Ponte Preta, no Morumbi Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

09/05/2021 13h39

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No dia 14 de outubro de 1977 Corinthians e Ponte Preta fariam o terceiro jogo da final do Campeonato Paulista, jogo que poderia dar ao time do Parque São Jorge um título depois de 23 anos de jejum. Eu tinha nove anos e estava em casa com meus pais, minhas duas irmãs, de 7 e 5 anos, e meu irmão caçula, de 3 anos. Hoje posso ter uma ideia de como era para minha mãe a dinâmica de uma casa com quatro crianças e um marido que fazia o que se esperava de um marido naquela época: saia cedo para trabalhar fora, voltava tarde e não mexia uma palha no que dizia respeito ao cuidado com um lar. Sobrava para minha mãe todo o trabalho doméstico e a criação da "tropa miúda", como meu pai se referia às filhas e ao filho.

Na noite de 14 de outubro de 1977 a casa funcionava como de costume, não fosse pela minha paranoica obsessão com o jogo que definiria o título do Campeonato paulista. Naquela época o televisionamento de uma partida era decidido na iminência do jogo: se o estádio estivesse lotado e emissoras e Federação chegassem a um acordo, haveria transmissão. Caso contrário, só nos restava o rádio.

Eu não estava conformada com o mistério e decidi protagonizar um escândalo. Tinha esperança de que meu pai, o cara que me fez amar o jogo, fosse se comover e me levasse ao estádio. Morávamos a doze quilômetros do Morumbi e meu pai, que nunca dirigiu, sabia exatamente onde conseguir um táxi que pudesse nos levar porque ele conhecia todos os taxistas da região.

Mas meu pai estava irredutível. Não levo de jeito nenhum, ele dizia. Se fosse uma final que envolvesse o Fluminense ainda pensaria, mas o Corinthians, minha filha, não faz sentido a gente se meter no meio daquela multidão de gente, eu precisaria te pegar no colo se alguma coisa acontecesse? E, para me acalmar, começou a me jurar que o jogo seria televisionado.

Eu não lembro exatamente como me comportei quando entendi que meu pai não me levaria de jeito nenhum, mas imagino que tenha aberto um berreiro. E deve ter sido tão colossal que quando abri os olhos vi minha mãe de pé na minha frente. Imaginei que ela fosse me dar uma bronca enorme porque, hoje entendo, devia estar exausta, queria que todos jantassem e fossem para a cama para que ela pudesse, enfim, descansar.

Minha mãe, que dizia ser botafoguense para irritar meu pai no limite do irritável (Vasco ou Flamengo ele não encararia), nunca gostou de futebol e gostava menos ainda da minha completa fixação por ele. Mas eis que ela - que naquela noite tinha 39 anos - me estende a mão com um casaco e diz: Vamos. Vou te levar a esse jogo.

Nessa hora meu pai pariu três filhos verdes na sala. Começou a dizer que seríamos pisoteadas, que não tinha cabimento, que ele não ia conseguir criar sozinho três crianças órfãs. Minha mãe ignorou todos os argumentos e respondeu apenas: esquente o jantar para as crianças e coloque todos na cama porque voltaremos muito tarde.

Chegamos de táxi ao Morumbi e tivemos que descer do carro muito antes de podermos sequer ver o estádio. Completamos o trajeto andando e eu tenho memória de essa ter sido uma noite fria e muito clara. Havia muita gente por todos os lados, minha mãe me segurava firme pela mão, e descia o final da Giovanni Gronchi resoluta e determinada. O jogo estava quase começando quando minha mãe conseguiu dois ingressos, e eu não sei até hoje como ela fez isso. O que sei é que naquela época havia dezenas de cambistas vendendo ingressos na porta e acho que minha mãe fez alguma negociação maluca. Se não me engano, entramos pelo portão 17, dos camarotes e das cativas. Ou seja: deve ter sido bem cara a aventura.

Eu não lembro muito do jogo, mas lembro das sensações. Lembro dos sons, das arquibancadas tremendo sobre minha cabeça, das pessoas de pé o tempo todo, dos abraços sem fim quando Basílio fez o gol (que eu não vi porque tinha um mar de gente na minha frente), da empolgação da minha mãe com aquela alegria descontrolada e desmedida.

Lembro das pessoas vindo até mim me abraçar, gente que eu nunca vi na vida, dizendo que eu era pé quente, que estavam felizes por ver uma criança no meio daquela bagunça, que outros muitos títulos eu ainda veria na vida.

Eu queria dizer a essas pessoas que eu não era (ainda) corintiana, que tinha acabado de mudar do Rio para São Paulo com minha família, que gostava mesmo era do Maracanã e do Fluminense, e que estava ali naquela noite porque futebol era o sentido da minha vida, era o que me fazia sair da cama todas as manhãs, era o que eu queria fazer para o resto de meus dias (eu queria ser jogadora profissional de futebol, e, ainda que isso parecesse tão proibitivo naquele momento, é difícil impedir o sonho de uma criança de ser sonhado). Queria explicar que estava ali porque não ia perder um jogo tão histórico e cheio de emoção, e que o resultado não era pra mim tão importante quanto estar presente. Mas eu não disse nada e, agradecida e feliz, aceitava aquele transe de dengo que me era oferecido.

Voltamos para casa de madrugada e minha mãe foi até a cozinha preparar alguma coisa para eu comer. Meu pai estava acordado, olhos esbugalhados, mas feliz por estarmos vivas. Ficamos os três comendo juntos e contando ao meu pai tudo o que vimos e sentimos.

Minha mãe tem hoje 84 anos e meu pai já partiu num rabo de foguete. Ela já foi muitas outras vezes aos estádios da vida levando netos que queriam ver jogos mas não tinham com quem ir. Ela ainda não morre de amores pelo futebol, mas faz qualquer coisa para ver a gente alegre.

Por isso e muito mais: obrigada por tanta ousadia e feliz dia das mães, dona Adele.