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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Gargalhada e golaços mostram que existe na gente força para seguir lutando

Bruno Henrique, do Flamengo, celebra com os companheiros gol marcado sobre a LDU - Twitter Conmebol Libertadores
Bruno Henrique, do Flamengo, celebra com os companheiros gol marcado sobre a LDU Imagem: Twitter Conmebol Libertadores

Colunista do UOL

05/05/2021 14h05

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O Flamengo recupera a bola. Diego toca para Gomes, que dá de letra para Bruno Henrique, que enxerga Arrascaeta livre. O uruguaio, de costas para o gol, deixa a bola passar porque sabe que Gabi está saindo da marcação e ficará melhor colocado do que ele por estar de frente para o gol. Gabi recebe e coloca a bola naquele lugar que os mais antigos chamariam de ponto futuro, onde em instantes veremos Bruno Henrique aparecer para chutar calculadamente no ângulo esquerdo do goleiro da LDU. Tudo isso aconteceu em sete segundos e oito décimos de segundo. Um universo de arte, encantamento e magia em pouco menos de oito segundos.

Foi mais ou menos nesse instante que vi pelas redes sociais que o ator e humorista Paulo Gustavo tinha morrido "vítima de covid". Coloco entre aspas porque entendo que as pessoas no Brasil não estão mais morrendo de covid já que se trata de uma doença para a qual existem muitas vacinas - e todas igualmente eficazes para evitar a morte. No Brasil as pessoas hoje morrem de abandono e de negligência, resíduos de um planejamento cruel e calculado pelo governo federal para que a pandemia se alastrasse entre a gente.

Enquanto o Flamengo realizava sua arte em campo, perdíamos um dos maiores talentos criativos e humorísticos da nossa história.

O golaço de Bruno Henrique, que tem a assinatura de cinco jogadores na verdade, é daqueles episódios que servem para elevar a gente - mesmo aqueles que, como eu, cresceram aprendendo a detestar o Flamengo - a um lugar de algum significado. E o mesmo efeito tem sobre todos e todas nós a risada, a gargalhada: aquele instante em que percebemos, ainda que intuitivamente, que a vida é muito mais do que dor, tristeza, contas, injustiças, perdas, desamparo, angústias, aflições.

Quanto tempo dura uma gargalhada? Dez segundos? Pouco mais, pouco menos? Quanto tempo dura uma troca de passes envolvente em direção ao gol adversário? Que tipo de eternidade existe nessas frestas? Que música escutamos quando podemos nos entender parte de criações como essas?

A gargalhada não é garantia de que as lágrimas secarão, e golaços como o descrito acima tampouco determinam vitória ou conquistas. Mas asseguram nossa existência. Confirmam que existe na gente alguma força vital para que queiramos seguir lutando.

Perder um artista talentoso para uma doença para a qual existe vacina deveria causar revolta. Estamos falando de um jovem cuja missão era fazer a gente rir sem que com suas piadas ele precisasse ofender ou diminuir outros e outras. Perder alguém assim é perder coisa demais.

Que o Flamengo esteja se recusando a deixar de executar sua arte mesmo em jogos difíceis realizados em locais de grande altitude é admirável. O time poderia ter entrado retrancado, tentando se poupar dos efeitos da altitude, se acanhado de praticar o futebol que sabe jogar. Em vez disso, o time decidiu ser quem é e, em troca, ofereceu um primeiro tempo de arte ao seu torcedor e a sua torcedora. É claro que com a ousadia vem a chance de fracassar, e o Flamengo esteve perto de uma derrota. Mas ontem era dia para premiar a coragem. A coragem daqueles que insistem em ser quem são num mundo que, todos os dias, pede para que nos recolhamos, nos apequenemos, nos calemos. A coragem de quem, mesmo indo embora tão cedo, deixa um legado importante: o recado para que cuidemos uns dos outros, para que sigamos rindo, para que não tenhamos vergonha de amar livremente.

Quando nos tirarem a arte e nos tirarem o riso então terão nos tirado tudo. E contra isso precisamos gritar.

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