Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Kaká, Adriano e como o privilégio de cor afeta o jogador de futebol
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
O torcedor é um apaixonado. Apaixonado pelo jogo e por aqueles que ele elege como heróis. Por isso não chega a ser curioso perceber como a mínima crítica a um desses heróis leva o torcedor a abrir sua caixa de ferramentas de ódio e despejar em cima de quem ousou não enxergar o craque do mesmo jeito que ele enxerga.
É um momento de intensidade, de raiva, mas também de alguma beleza porque é raro em nossa sociedade a ocasião em que um homem heterossexual declara amor abertamente a outro homem.
O que não deveria nos surpreender porque, já ensinou a filsósofa Marilyn Frye: "Dizer que um homem é heterossexual implica somente que ele mantém relações sexuais exclusivamente com o sexo oposto. Tudo - ou quase tudo - o que é próprio do amor, a maioria dos homens hétero reservam para outros homens. As pessoas que eles admiram, respeitam, adoram, imitam, idolatram e com quem criam vínculos mais profundos; a quem estão dispostos a ensinar e com quem estão dispostos a aprender; aqueles cujo respeito, reverencia e amor eles desejam - esses são, em sua maioria esmagadora, outros homens. Das mulheres eles querem devoção, servitude e sexo. A cultura sexual masculina é homoafetiva: ela cultiva o amor pelos homens".
Nós, mulheres, sempre notamos isso. Mas é um alívio quando alguém consegue colocar a percepção em palavras e depois compartilhá-las.
Quando você consegue se distanciar dos ataques, entende que o "carinho da torcida" diz menos sobre a opinião emitida e mais sobre quem esperneia. E acaba caindo no meme "Percebe, Ivair, a petulância do cavalo": o furioso acha que, ao estrebuchar, vai acabar colonizando você com a opinião dele. Não, não vai.
Vamos ao começo: o pontapé inicial foi dado quando eu disse que achava que Kaká tinha sido um jogador superestimado. Bastou para que auto declarada defensoria pública de Kaká começasse campanha furiosa para provar que estou errada. Trata-se de viagem para uma terra-arrasada porque não há, para esse tipo de opinião, a certa e a errada. O que há é apenas uma opinião que é diferente da outra opinião.
Mas reforço aqui o que penso. Kaká foi um jogador acima da média pelo período de um ano, talvez um pouco mais. E mesmo dentro dessa fase espetacular eu nunca achei de verdade que havia margem para compará-lo a Messi ou Cristiano Ronaldo. E em defesa da minha coerência, que não me visita todos os dias, eu disse isso num programa do SporTV em 2006 ou 2007.
Os debates acalorados sobre minha opinião tentaram reduzir a treta em questão à Bola de Ouro que Kaká ganhou em 2007, a mesma que Rivaldo ganhou em 1999. Deve ter uma pá de gente que acha que Rivaldo, apesar do prêmio, foi um jogador superestimado (Não eu. Eu acho que ele foi subestimado e que jogou bem mais do que Kaká).
Claro que se eu fosse a CEO ou a CFO da FIFA, não teria dado a Kaká a Bola de Ouro naquele ano, mas quem sou eu na fila do arroz? A julgar pela intensa procura daqueles que escolhem espernear e ofertar xingamentos, sou alguém que vale o esforço.
Nem mesmo eu faço tanto de mim. Considero minha opinião apenas uma opinião. Tão boa, tão tosca, tão exuberante ou medonha como qualquer outra. O que faz o torcedor pensar que a opinião dele sobre Kaká é melhor ou mais correta do que a minha?
Como podemos objetificar uma opinião como essa? Títulos? Passes? Gols? Escanteios exuberantemente batidos? Bolas de Ouro? Quem viu Kaká jogar tem uma opinião sobre ele. Bom, ruim, mediano, craque, cracaço. "O senhor sabe, cada um o que quer aprova. Pão ou pães é questão de opiniães" (Viva Guimarães Rosa)
Não faz nenhum sentido tentar convencer a outra pessoa de que sua opinião sobre a qualidade de um jogador é a opinião correta. "Você venceu: a medalha da opinião correta para se a cor azul é melhor do que a cor laranja é sua. Diante de tanto esperneio, gritaria e berros fica então provado que a cor azul é uma cor melhor do que a laranja". O debate fica com esse tom.
Mas a verdade é que esse texto nem está sendo escrito por nenhuma dessas coisas, o que já me faria tirar nota baixíssima em qualquer escola de jornalismo.
Eu quero mesmo falar sobre o recorte racial da questão (o que na sociedade brasileira significa fazer ao mesmo tempo o recorte de classe).
Quando fui perguntada pelo Sincerão sobre que jogador eu achava superestimado pensei em Kaká, mas também me ocorreram os nomes de Pato e Diego.
Quem entende o racismo como questão estrutural de nossa sociedade sabe que não há como desconsiderar o peso que o fato de Kaká ser um rapaz branco de classe média alta teve na construção da imagem do craque. E o mesmo vale para Pato e Diego, ainda que não sejam, pela opinião pública, considerados como estando no mesmo nível de Kaká.
Quando Kaká surgiu, matérias e mais matérias exaltavam sua origem, chamando até atenção - de forma muito gentil - para o fato de ele ser evangélico (o que uma infinidade de jogadores são, mas nem sempre essa circunstância é avaliada de forma tão açucarada como foi com Kaká). O retrato do menino de ouro estava pintado.
E isso não quer dizer que ele não seja um homem de ouro, que não seja um cara bacana, correto. Ao que tudo indica, Kaká é tudo isso. Mas a questão não é mais sobre Kaká e sim sobre nós, pessoas brancas, entendermos que em nossas conquistas existe uma dose fundamental de privilégio de cor. E, ainda mais difícil, que nossos fracassos são apenas nossos mesmos.
Adriano, o Imperador, sempre teve tratamento rigorosamente oposto da imprensa e de boa parte dos amantes do jogo. Adriano nunca pôde pisar minimamente no lado sombrio da vida (o que todos nós fazemos cedo ou tarde) sem que a imprensa estivesse pronta para crucificá-lo. E Adriano jogou muita bola. Para mim, bem mais do que Kaká.
Lembro aqui do memorável texto de Lucio de Castro para sua Agência Spotlight, em que ele revela troca de email com o escritor Eduardo Galeano no qual falavam sobre Adriano, jogador sempre tão bombardeado pela mídia. Galeano explicava a Lucio por que isso acontecia.
"Eu creio que o caso de Adriano é revelador, como bem disse, de preconceitos e julgamentos que vão além das anedotas. O bombardeio que Adriano sofre revela, por exemplo:
- A obsessão universal pela vida privada dos que tem êxito, e acima de tudo pelos desportistas vencedores que vêm da miséria e que tinham nascido estatisticamente condenados ao fracasso.
- Exige-se deles que sejam freiras de convento, consagrados ao serviço dos demais e com rigorosa proibição do prazer e da liberdade.
- Os puritanos que os vigiam e os condenam são, em geral, medíocres cujo desafio mais audacioso, sua mais perigosa proeza, consiste em cruzar a rua com luz vermelha, alguma vez na vida, e isso tem muito a ver com a inveja que provoca o êxito alheio.
- Tem muito a ver com a demonização dos pobres que não renegam sua mais profunda identidade, por mais exitosos que sejam.
- E muito tem a ver, também, com a humana necessidade de criar ídolos e o inconfessável desejo de que os ídolos se derrubem".
O texto completo vocês podem ler aqui.
Mas vamos sair dessa pátria amada e maltratada. Falemos de David Beckham.
O que seria do astro inglês se tivesse nascido (como canta Bia Ferreira em "Cota não é esmola") "preto na favela"? Teria alcançado a mesma fama? A mesma benevolência da mídia esportiva?
Vivemos num mundo racista e assim como Kaká eu também me coloco nessa balaio: as conquistas de minha vida não podem ser separadas do fato de eu ser branca e de ter nascido em família de classe média alta - exatamente como ele.
Para encerrar, como o episódio envolvendo Rogerio Ceni segue sendo trazido à luz, preciso dizer (como já disse outras vezes, e uma delas nessa entrevista para o Blog do Menon) que naquela ocasião eu errei porque extrapolei os limites da opinião.
Precisei de muito tempo para entender meu erro e os motivos que me levaram a ele. Todo erro carrega com ele uma oportunidade. Pra começar, é um convite ao recolhimento e à reflexão.
Hoje, sei que sou uma pessoa melhor por causa desse erro - o que não quer dizer que passar por essa investigação não tenha causado sofrimento e dor.
Mas crescer dói, e quem topa encarar essa dor sai maior do outro lado. Segue o jogo, pessoal.
Termino com um trecho da música de Bia Ferreira, que você pode escutar aqui:
"Existe muita coisa que não te disseram na escola
Cota não é esmola
Experimenta nascer preto na favela, pra você ver
O que rola com preto e pobre não aparece na TV
Opressão, humilhação, preconceito
A gente sabe como termina quando começa desse jeito
Desde pequena fazendo o corre pra ajudar os pais
Cuida de criança, limpa a casa, outras coisas mais
Deu meio-dia, toma banho, vai pra escola a pé
Não tem dinheiro pro busão
Sua mãe usou mais cedo pra correr comprar o pão
E já que ela ta cansada quer carona no busão
Mas como é preta e pobre, o motorista grita: Não!
E essa é só a primeira porta que se fecha"
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.