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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O futebol e outras injustiças

VIDAL CAVALCANTE/AE
Imagem: VIDAL CAVALCANTE/AE

Colunista do UOL

25/02/2021 18h05

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O futebol é injusto. Todo torcedor pode, em segundos, listar injustiças cometidas contra seu time.

E todo torcedor sabe que poucas coisas causam tanta revolta quanto essas injustiças.

Fosse eu vascaína, estaria agora chutando os móveis pela casa absolutamente convencida que meu time estava sendo rebaixado depois de uma garfada.

Fosse eu colorada, estaria igualmente furiosa gritando por aí que a expulsão do Rodinei foi exagerada, que ter três gols anulados em jogo decisivo é marmelada.

Não fosse eu corintiana, talvez estivesse até hoje vociferando contra o Brasileirão de 2005 e exigindo vídeos da expulsão do Tinga vista de todos os ângulos.

E exatamente porque sou corintiana levarei até o último dia da minha vida o gosto amargo da roubalheira descarada que testemunhei in loco durante a Libertadores de 2013 no Pacaembu contra o Boca.

Esperar que o torcedor se comporte desapaixonadamente é esperar que o futebol morra. Torcer é, em alguma medida, distorcer. Se esse distorcer não vier acompanhado de violências, de ofensas, de machismo, racismo ou outras fraquezas de caráter não tem nada de errado com ele.

Nelson Rodrigues distorcia para o Fluminense sem nenhum pudor - e algumas de suas mais geniais tiradas vinham justamente dessa parcialidade descarada.

Quando em 1963 o VT foi introduzido às transmissões e os lances passaram a ser revistos, Nelson Rodrigues era comentarista. Num jogo do Fluminense, quando o árbitro marcou um pênalti para o adversário, Nelson reclamou e disse que não havia sido pênalti. O VT então mostrou que houve pênalti e, confrontado, Nelson respondeu: O Video Tape é burro.

E, ainda que a declaração soe estapafúrdia, ela talvez comporte um pouco de verdade.

O vídeo-tape é burro na medida em que futebol é um jogo cheio de subjetividades, de nuances, de Sobrenaturais de Almeida (para seguir com Nelson), e toda vez que a gente tenta objetificar o jogo, toda vez que a gente destrói uma geral em nome de cadeiras confortáveis com preços inacessíveis, toda vez que a gente analisa o futebol apenas com números e computadores, a gente tira um pouco da dimensão de arte, da dimensão do encantado e do inexplicável que fazem parte da magia do jogo.

Na geografia sagrada do corpo, tudo o que a gente faz com as mãos é considerado nobre e fica destinado aos pés o lugar do inumano, aquilo que nos liga aos nossos ancestrais, aquilo que está mais perto do inferno e mais distante do céu. A cabeça, a razão, o cérebro; esses sim estão apontando para cima e nos distanciando de como nos locomovíamos quando vivíamos nas savanas.

O futebol mostra que não é bem assim e que a geografia sagrada do corpo pode passar pelos pés.

Na Geografia sagrada do planeta, está no norte o que muitos consideram a parte desenvolvida da humanidade; e no sul a parte nem tão desenvolvida. No norte o saber; no sul aquilo que se explora.

O futebol subverte toda essa lógica colonial. Subverte a lógica da objetividade. Subverte, demasiadas vezes, a própria lógica.

Muito se elogia as pessoas que conseguem demonstrar razão em situações de tensão. Os apaixonados e emotivos não andam bem vistos. A razão, afinal, está associada ao masculino e a paixão ao feminino. Razão, dizem, é sentimento adulto e maduro; emoção nem tanto.

O Brasileirão acabou e muitos torcedores estarão convencidos de que seu time perdeu, ou foi rebaixado, ou não conseguiu vaga para a Libertadores, por causa de um lance específico.

Só que, assim como na vida, nossos fracassos raramente são responsabilidade de terceiros e estão mais associados a uma combinação de fatores e de episódios que envolvem nosso comportamento.

Excetue-se desse pensamento, claro, fracassos que vêm de mazelas sociais, como da falta de acesso à educação, à saúde e à moradia. Essas são injustiças que estão diretamente ligadas ao sistema econômico que nos organiza privilegiando poucos e excluindo muitos. Estou falando das tristezas que fazem parte da condição humana: sombras, medos, traumas, atravessamentos, perdas.

Também como na vida, não temos como saber quando uma notícia aparentemente terrível vai, com o passar do tempo, se revelar abençoada.

O Corinthians caiu no Brasileirão de 2007. Foi um momento de profundo sofrimento pra mim. Hoje, olhando para trás, entendo que sem 2007 não teria havido 2012.

O futebol é injusto e a vida é injusta. Mas o futebol é um jogo e jogos comportam injustiças. Já a vida, não deveria.

Lutar contra injustiças, se levantar e se indignar, gritar e espernear, lutar para que um dia sejamos tão potentes e tão unidos que nenhuma injustiça vai ser capaz de prevalecer: eis aí uma boa luta.

Mas esperar que o futebol seja tratado como uma máquina computadorizada e com isso esvazie-se de seu encantamento, e que o torcedor seja imparcial e desapaixonado é enterrar de vez esse jogo que a gente teima em amar.

Em Guerra nas Estrelas existe um momento em que alguém diz a Luke Skywalker: "desligue o computador e confie nos seus sentimentos". É nessa hora que o heroi encontra nele mesmo as reservas de caráter necessárias para enfrentar seu destino.

É disso que se trata o futebol. Ele nos aproxima do que podemos ser, do que podemos superar e alcançar juntos, enquanto time.

O Brasileirão 2020 acabou em 2021 e será lembrado para sempre como aquele campeonato em que a estrela desse jogo faltou: a gente, cada um de nós que orgulhosamente nos denominamos torcedores, os que torcem e distorcem.

O campeonato de estádios vazios, de VARs decisivos e no qual o time campeão, para poder gritar "é campeão", precisou sentar no gramado e esperar uma decisão de VAR em jogo que ocorria bem longe dali. Uma imagem triste, melancólica, absurda.

Que o computador pare de sugar como um vampiro o encantamento do jogo, que nunca mais precisemos jogar um campeonato sem torcida; que a paixão seja para sempre celebrada; que o fracasso seja entendido como recomeço e que as injustiças sejam todas um dia canceladas.

Até lá, vida longa aos indignados.