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Marília Ruiz

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Marília Ruiz: Carta aberta ao Tite

Tite, técnico da seleção brasileira - Reuters
Tite, técnico da seleção brasileira Imagem: Reuters

08/06/2021 14h48

Escrevo esse texto pretensioso antes do jogo Paraguai x Brasil, antes do anúncio do esperado manifesto de atletas e comissão técnica, mas depois de uma frustrante coletiva de imprensa do técnico da Seleção.

Poderia escolher aqui adjetivos múltiplos para elogiar Tite. Relação pessoal à parte, realmente gosto muito do senhor Adenor Leonardo Bachi, admiro a calma, a lealdade, a serenidade (quase) constante, o poder agregador, a resiliência e até a teimosia do treinador. Essas mesmas qualidades podem ser (e são) usadas para criticar o trabalho dele: "calmo demais", "paneleiro", "discurso de pastor" e teimoso.

O que eu lamento hoje aqui é a ausência da pessoa física do meu amigo Tite.

O cidadão Tite, por escolha do técnico, saiu de cena quando ele aceitou o beijo na face do ex-presidente da CBF Marco Polo Del Nero em sua apresentação como treinador do Brasil há anos. Meses antes dessa cena, o cidadão Tite havia deixado sua assinatura ao lado de outras 126 personalidades que pediam a saída de Del Nero e a convocação de eleições democráticas para o comando da CBF. Mas o movimento #OcupaCBF, liderado pela ONG Atletas pelo Brasil e o Bom Senso FC, morreu.

Não houve eleição democrática. Não mudou nada na estrutura do poder do futebol brasileiro: o esquema de suserania e vassalagem que retroalimenta federações e CBF seguiu firme e forte com Del Nero, coronel Nunes (que voltou a esquentar a cadeira de presidente), Rogério Caboclo e etc.

De novo: o que eu lamento? A ausência do Tite.

Se eu fosse uma boa amiga reconheceria aqui ser injusto esperar dele que nos salvasse de todo mal. Se eu fosse melhor, saber que entender as limitações do seu cargo, saberia tolerar o silêncio incômodo e ainda o defenderia neste espaço contra as críticas que ele atrai de todos os lados e de todas as cores.

Se eu fosse mais serena e tolerante como ele é, daria mais espaço aqui para os "sinais" que ele emana (máscaras duplas, atenção e delicadeza com repórteres, olhos fixados na câmera como se estivesse de fato falando com seu interlocutor, com seu fiel escudeiro perseguido pela chefia sentado ao seu lado). Se eu fosse Tite, seria menos dura.

Tenho certeza de que ele é melhor do que eu. Tenho certeza também que o cargo dele carrega mais simbolismos, responsabilidades e importância do que o meu. Mas eu sou uma inconformada crônica. E até arrisco dizer que ele aprovaria minha conduta.

Não tenho a serenidade (ainda que incômoda) para respirar fundo e confiar que o Comitê de Ética da CBF vai investigar e tomar as rigorosas medidas necessárias diante das acusações de assédios sexual (e das contundentes provas) e moral contra o presidente da CBF feitas pela secretária colega de trabalho de Tite na sede da entidade.

"Sabemos a dimensão que tem, a gravidade do caso, temos consciência disso (referindo-se especificamente à denúncia da secretária da CBF). Agora existe um Comitê de Ética da CBF que toma as devidas providências. Não é da nossa alçada", respondeu um incomodado Tite ao se perguntado sobre o assunto na coletiva de ontem.

Ah, Tite... É da sua alçada. É da alçada de todos nós.

Nisso, como amiga, queria te dar um conselho pretensioso: sim, técnico de futebol tem que estar alinhado com o futebol; e o futebol precisa estar alinhado com lado certo da Força.

O silêncio ensurdecedor do futebol sufoca denúncias, encobre escândalos e perpetua o mal. Esse silêncio é incompatível com a mudança e com a Justiça. Não é possível que, diante de tantas denúncias e de tantas provas, o foco e o verbo estejam direcionados para a convocação da Seleção para a Copa América da política, da pandemia e das disputas comerciais de emissoras.

Sei que é pedir demais - e você mesmo pediu para que tomássemos cuidado com o que fôssemos escrever sobre o teor do manifesto que deve ser publicado hoje...

Mas sou uma inconformada e uma amiga insistente. Precisamos, sim, que os bons estejam alinhados.

A punição que os bons sofrem, quando se recusam a agir, é viver sob o domínio dos maus. A frase é de Platão, filósofo grego.

PS: É bom deixar bem claro: Platão, discípulo de Sócrates, viveu no século III a.C. e não era comunista.