Proteger direitos humanos é obrigação do esporte desde o fim da 2ª Guerra
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O esporte, historicamente associado à celebração da excelência física e à união entre povos, possui também uma função normativa e política que ultrapassa o campo de jogo. A trajetória do movimento esportivo diante do apartheid sul-africano traz um bom exemplo e revela a força civilizatória do esporte quando este se compromete com a proteção dos direitos humanos.
O princípio da não discriminação na Carta Olímpica: uma resposta ao pós-guerra
Foi somente após a atrocidade da Segunda Guerra Mundial que o princípio da não discriminação foi formalmente incorporado à estrutura normativa do Comitê Olímpico Internacional. Em 1949, com o mundo ainda lidando com as cicatrizes do conflito e a emergência de uma nova ordem internacional baseada na dignidade humana, o COI adotou esse princípio como um dos pilares da Carta Olímpica. Hoje, ele está consagrado no Princípio Fundamental 5º, que determina que o gozo dos direitos e liberdades previstos na Carta deve ser assegurado "sem discriminação de qualquer tipo".
Esse enunciado vai além da retórica: ele cria obrigações normativas para Comitês Olímpicos Nacionais, atletas e federações, funcionando como limite ético e jurídico dentro do Movimento Olímpico. Desde então, a Carta Olímpica passou a assumir contornos de uma constituição transnacional do esporte, com normas que vinculam todos os seus membros.
O caso do apartheid: quando o esporte disse não à segregação racial
O regime de apartheid na África do Sul tornou-se, nas décadas seguintes, um verdadeiro teste para a eficácia desse princípio. A recusa do governo sul-africano em permitir equipes esportivas multirraciais em competições internacionais foi interpretada como uma afronta direta à Carta Olímpica. Após tentativas frustradas de diálogo com o Comitê Olímpico Sul-Africano (SANOC), o COI decidiu, em 1963, impor um ultimato. Diante da negativa em promover mudanças, a África do Sul foi excluída dos Jogos Olímpicos de 1964.
A Fifa, pressionada por campanhas internacionais e movimentos antirracistas, também acabou adotando uma postura semelhante: em 1961, suspendeu a Federação Sul-Africana de Futebol (SAFA), rechaçando a política segregacionista do país. Apesar de alguns recuos posteriores, a exclusão definitiva só veio em 1976, após novos episódios de repressão violenta na África do Sul e uma crescente mobilização global por justiça racial. Essa sanção reforçou o papel do futebol como mecanismo internacional de defesa de valores fundamentais, mesmo diante da histórica resistência da entidade a envolver-se em questões políticas.
A exclusão definitiva do SANOC em 1970, aprovada mesmo contra a vontade de parte da liderança do COI, representou uma das primeiras grandes sanções internacionais contra o apartheid — e teve origem no esporte. O caso reforça o potencial do Movimento Olímpico de agir como mecanismo autônomo de pressão internacional, com base em sua normatividade interna e em seus compromissos com os direitos humanos.
O reconhecimento internacional da legitimidade do princípio olímpico
A teoria constitucional de Teubner, ao destacar o papel limitativo das constituições, oferece uma lente valiosa para compreender a atuação do esporte — especialmente no âmbito olímpico — como espaço de imposição de normas fundamentais, com destaque para o princípio da não discriminação.
A atuação do COI não se deu de forma isolada. As Nações Unidas passaram a reconhecer a importância do "princípio olímpico" em sua própria política de combate ao apartheid no esporte. Ao incorporar esse princípio em suas resoluções e apoiar a exclusão esportiva da África do Sul, a ONU legitimou o esporte como ferramenta diplomática e instrumento de ação política em defesa dos direitos fundamentais.
Esse processo culminou com a Declaração do COI sobre o Apartheid no Esporte, em 1988, reafirmando que a segregação racial violava os princípios mais elementares da Carta Olímpica. A reintegração da África do Sul ao Movimento Olímpico só ocorreu em 1991, após a queda do regime e com a fundação de um novo comitê olímpico liderado por um dirigente negro. A Carta Olímpica, e não apenas os tratados de direitos humanos, foi o fundamento normativo dessa virada histórica.
O papel do Tribunal Arbitral do Esporte e os desafios do compromisso jurídico com os direitos humanos
Embora o caso do apartheid represente um momento paradigmático da força do princípio da não discriminação, sua aplicação contemporânea ainda enfrenta limites no campo jurídico do esporte. O Tribunal Arbitral do Esporte (CAS/TAS), por exemplo, tem invocado esse princípio em algumas decisões relacionadas a direitos humanos — como em casos envolvendo discriminação de gênero, identidade de gênero ou critérios de elegibilidade. No entanto, essa atuação tem sido comedida e muitas vezes marcada por tensionamentos com as federações esportivas internacionais.
Esse cenário revela tanto a importância crescente da aplicação do princípio da não discriminação na jurisprudência esportiva quanto os desafios ainda existentes. O movimento jurídico privado do esporte — formado por estatutos, códigos de conduta, regulamentos e tribunais arbitrais — precisa reconhecer, com mais clareza e coragem, sua responsabilidade na proteção de direitos humanos. O compromisso com o fair play não se esgota na ética da competição: exige também equidade, dignidade e respeito fora do campo.
Esporte como agente civilizatório
O caso sul-africano mostra que o esporte não apenas reflete normas sociais e jurídicas, mas também é capaz de produzi-las e impô-las como exigência ética. O princípio da não discriminação, longe de ser apenas simbólico, impõe limites e deveres. A atuação do COI e da Fifa diante do apartheid revela como normas internas do esporte podem pressionar governos e instituições a respeitarem direitos fundamentais.
Assim como Teubner observa que constituições contemporâneas atuam limitando poderes e impondo parâmetros de civilidade, o mesmo ocorre com normas esportivas que, ao serem interpretadas como verdadeiros princípios constitucionais do esporte global, tornam-se capazes de transformar realidades. O desafio atual é garantir que tais normas não fiquem restritas a documentos ou à retórica institucional, mas continuem sendo instrumentos concretos de transformação social e proteção dos direitos humanos.
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