Julio Gomes

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Racismo e violência policial no futebol são, sim, casos de Estado

A palavra que mais ouvi ao longo da terça-feira foi "Conmebol". Também, pudera. Não tem planinho de marketing ou media training que salvem quem tem um presidente como Alejandro Domínguez, o Tarzan paraguaio.

Poderíamos perguntar para ele como se sentiria, como paraguaio, se cada vez que se sentasse a uma mesa de jantar lhe falassem que o relógio dele era falso. Ou o sapato. Ou o paletó de suposta grife. Sei lá se isso é o que mais ofende um paraguaio. Talvez falar das guerras perdidas, que dizimaram a população do país, ou então tirar um sarro do idioma guaraní. O ponto aqui é: que paralelo se pode fazer para um paraguaio branco, rico e poderoso entender que há um problema muito sério quando pessoas imitam macacos para ofender outras por sua cor de pele?

Mais valioso para compreender tudo do que a gafe de Domínguez foi o que disse o presidente do Peñarol uruguaio. Esse sim tocou o dedo na ferida e escancarou algo que venho falando há quase um ano. Existe um problema que não existia. Um problema de retaliações mútuas e que está escalando, virando uma tensão diplomática.

Se nós temos passado horas e horas falando sobre racismo no futebol e as ofensas recebidas por jogadores e torcedores brasileiros por toda a América do Sul - e não é que este seja exatamente um continente de pessoas brancas e olhos azuis -, eles, nos países vizinhos, têm passado horas e horas falando sobre a violência que os torcedores de qualquer país sofrem ao vir até o Brasil ver um jogo de futebol. Usam a palavra "xenofobia" com uma frequência parecida com a que usamos "racismo".

E racismo e xenofobia são coisas igualmente asquerosas.

Você, leitor ou leitora, se acha xenófobo? Tem aversão ao estrangeiro? Pois é, eles também não se acham racistas. Vou melhorar a pergunta. Se desembarcar um argentino folgado aqui, com a camisa de algum time, falando alto, desafiando a polícia e entrando onde não deve... você acha que ele deve apanhar? Opa, aí já muda a coisa, não muda?

Prender vândalos não é xenofobia. Mas e se a força policial do teu país não duvida dois segundos antes de sair dando porrada em estrangeiros, de forma indiscriminada? Eu vi isso acontecer no Maracanã, um ano e meio atrás. Ninguém me contou, eu estava lá.

A polícia dos diversos estados brasileiros costuma fazer um trabalho porco em estádios de futebol. Eu, quando vou ao jogo do meu time, passo longe. Está claro que a polícia não está lá para proteger. Trata torcedores como inimigos. A Polícia Militar não é preparada para atender cordialmente a sociedade, muito pelo contrário. Se já é assim como a população local, o que estará acontecendo com estrangeiros - muitos deles bem folgados -, que já desembarcam aqui com o rótulo de racista na testa?

Temos visto imagens horríveis dentro e fora dos estádios. Em São Paulo, Rio ou Minas, é sempre a mesma coisa. Porrada antes, pergunta depois. Quem começou? Sei lá, teria de estar no local de cada uma das brigas. Mas está claro o uso de força desproporcional de forma recorrente. E aí, quando vai um brasileiro para lá, os caras retribuem e enfiam o dedo na ferida. E assim vai girando a roda, para um lugar completamente equivocado.

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O problema, hoje e faz tempo, não é da Conmebol nem dos clubes. Que, sim, podem ajudar. A Conmebol poderia primeiro entender o problema para, depois, pensar em ajudar a resolvê-lo. Criar um grupo de trabalho, endurecer penas, enfim, tem um monte de coisa para fazer. Os clubes brasileiros podem e devem pressionar. É incrível que gente branca e rica, como Leila Pereira e outros presidentes de clube, que nunca deram a menor bola para o racismo, estejam se movimentando. Isso é evolução.

Mas, repito, o problema não será resolvido por Conmebol e clubes. Estamos em uma situação de Estados. De diplomacia, de geopolítica. O governo brasileiro tem a obrigação de conclamar seus vizinhos para atacar o problema. Não será possível e nem seria plausível querer alterações nas leis de tais países. Mas o Brasil, uma nação que sempre viveu de costas para o continente, precisa se voltar a ele e ajudar na criação de medidas afirmativas, que criem conscientização sobre como o racismo nos afeta - especialmente, claro, a enorme população negra do país.

Igualmente, deveríamos escutar o que eles têm a falar e melhorar a atuação policial no tratamento de estrangeiros. Com interlocução e diálogo, as autoridades dos países poderiam, por exemplo, evitar viagens de torcedores violentos, muitas vezes já condenados.

Estamos, neste momento, em guerra. Não é uma guerra com tanques, bombas e mísseis, mas é uma guerra de ofensas e violência cultural. Os gestos racistas se avolumam e parecem cada vez mais ter a intenção de atacar a própria sociedade brasileira, e não apenas um indivíduo. Do outro lado, a violência policial parece querer ser a resposta à injustiça que representam as injúrias. E neste momento, enquanto eu escrevo, já há torcidas de times de países vizinhos "jurando" torcidas dos nossos times - e vice-versa.

O acontecimento com Luighi na Libertadores sub-20 e a gafe bisonha de Alejandro Domínguez são uma oportunidade tremenda. O assunto está na pauta do dia. É uma chance de atacá-lo e ajudar a resolver uma situação por muitas gerações. Não com multinhas, mas com empatia e conscientização. As autoridades precisam agir, e é o Brasil quem tem de liderar o processo. A coisa está escalando e não vai acabar bem.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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