Julio Gomes

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OpiniãoEsporte

Adeus, Canindé! O final triste de sempre e um ar renovado de esperança

O cronômetro já havia passado dos 45. No Canindé, não há relógio no placar. O tempo é controlado por cada um. No pulso, no celular, na carne viva dos dedos. No Canindé, o tempo para. No Canindé, o tempo voa. Depende de quem está ganhando.

Foi uma jogada pela direita de algum jogador cujo nome não sei, pois acabou de chegar junto com outros tantos na nova era da Lusa SAF. A SAF que irá fazer um novo estádio, uma nova arena, no lugar do Canindé — a despedida, ou até logo, foi ontem no empate contra o Novorizontino. Veio o chute de outro jogador cujo nome não sei, sendo atrapalhado por um outro ainda. E a bola bateu em um outro ainda.

E ficou parada. Ali, na pequena área. Ela parou.

O tempo parou. O mundo parou. A bola girava no mesmo lugar e, enquanto girava, olhava para cada um dos 10 mil rostos em volta dela. Mais de uma vez. Ela sorriu, a bola. Com aquela mesma maldade de sempre.

Foram mais de 50 anos vendo os mesmos rostos, a mesma aflição, a mesma agonia, a mesma tensão. Alguns, ela conhecia de velha data. Outros poucos eram novinhos, ela ficou até curiosa.

A bola girava. E sorria com a maldade de sempre. Deu tempo de pensar em tanta coisa. De lembrar de tanta coisa. De quando o placar do jogo era atualizado por um cara que ficava lá no alto, no meio de uma das quatro torres de iluminação. As placas eram amarelas. Às vezes, nem cabia o nome do outro time.

A bola entrava no fundo do gol e logo olhava para o alto, para o rapaz trocar um dos números. Lembrou também de quando as arquibancadas eram de madeira. Lembrou-se das piscinas que davam até o nome à rua. Era tanta gente!

Deu tempo de lembrar-se da lojinha que não era do clube, era daquela senhorinha, depois da filha dela, e era onde as pessoas compravam camisetas do time. Lembrou-se do campo de terra. A bola até passeava por aquele campo! Mas não em dia de jogo, pois em dia de jogo eram os carros que estacionavam por lá.

Lembrou-se do bar. Ah, que saudades do bar. Tri Fita Azul, era o nome dele, bem abaixo daquele ginásio em que o escudo fica pintado em um fundo amarelo. Que bolinho de bacalhau! Que alheira! O pessoal ia mais cedo para ir ao bar, mas ele também já fechou. Como também já tinha fechado o quiosque do caldo verde, bem na frente da bilheteria principal.

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E a bola girava. Ali no mesmo lugar. Na pequena área. O tempo, parado.

Ninguém vai me chutar? Puxa vida. A bola até parou de sorrir. Passou 50 anos fazendo pirraça, afinal. Tudo bem, é o último dia. É o último jogo. Olha quanta gente veio! Tudo bem, hoje eu vou para o lugar certo. Vou animar um pouco essa gente. Eles já perderam o caldo verde, o vinho, o bolinho, o bar, a piscina, a velhinha, a dignidade, a esperança, a alegria de me ver.

Oi? Alguém pode, por favor, me chutar para lá?

Não! Você de branco não! Nããão.....

E foi-se a bola para longe. E foi-se o tempo de tão longe. Tanta pirraça. Tantos anos de maldade. Entrando quando queria, não entrando quando a gente tanto queria.

Nos últimos tempos, nem dá para culpá-la. A bola andou sendo muito mal tratada por aquelas bandas. Djalma Santos, Julinho, Pinga, Brandãozinho, Simão, Ceci, Enéas, Ivair, Dinamite, Leivinha, Zenon, Luís Pereira, Toninho, Toquinho, Jorginho, Capitão, Dener, Bentinho, Maurício, Paulinho, Caio, Zé Roberto, Emerson, César, Rodrigo, Leandro, Marco Antônio, Ananias.

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Tanta gente boa. Esses sim, tratavam bem a dona bola. Saudades deles. Não tanto dos últimos.

Torcida da Portuguesa faz festa durante a partida contra o Novorizontino, pela segunda rodada do Paulistão 2025
Torcida da Portuguesa faz festa durante a partida contra o Novorizontino, pela segunda rodada do Paulistão 2025 Imagem: ROBERTO CASIMIRO/ESTADÃO CONTEÚDO

A bola não entrou. O tempo acabou. E começou o foguetório. Em 1998, semifinal do Campeonato Brasileiro, época em que os times entravam separados em campo, quem não se lembra? Soltaram os rojões quando o Cruzeiro entrou em campo. E depois quanto Leandro perdeu o pênalti. Piada de português.

Ontem, foi parecido. O jogo acabou empatado, 2 a 2. Estava 2 a 0! Jogo na mão. Chance atrás de chance. Que empate amargo, frustrante. Isso é hora de foguetório??!! Mas já estava programado. Foi bonito, até. Um pouco melancólico, mas bonito.

Canindé cheio

O Canindé não enchia desse jeito, de verde e vermelho, desde sei lá quando. Talvez dos próprios jogos com o Cruzeiro, mais de um quarto de século atrás. Ingressos vendidos antes. Nada de caos, todo mundo chegou cedo. Uma hora, a torcida ia aprender!

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Havia uma leveza no ar. As chagas foram tantas, as cicatrizes, o desrespeito, a desesperança. Agora, há uma nuvem de renascimento no ar. A chuva que ameaçava foi para outro lado. O maestro passava para lá e para cá e era aplaudido pelos que notavam. Ex-jogadores apareceram. Marco Antônio, Emerson, Valdomiro. Até a polícia parecia estar sem aquela cara amarrada de sempre.

Torcedores da Portuguesa soltam balões na despedida do Canindé; estádio passará por reforma após jogo contra o Novorizontino
Torcedores da Portuguesa soltam balões na despedida do Canindé; estádio passará por reforma após jogo contra o Novorizontino Imagem: VINICIUS NUNES/AGÊNCIA F8/ESTADÃO CONTEÚDO

"Viva a Lusa do Nosso Canindé", dizia a faixa, ao lado da já tradicional da Leões da Fabulosa. Desta vez, não deu para ficar atrás do gol em que o time ataca, uma tradição de décadas.

Subiram aos céus balões que carregavam uma simples mensagem: "Obrigado, Canindé". No intervalo, um rapaz pediu a namorada em casamento e ganhou um "sim". Alguém gritou: "Vocês contam ou eu conto?". E todos riram. Acho que nos acostumamos a achar que, no fim, tudo sempre dá errado.

Encontrei alguns amigos. Encontrei o Evandro, com que trabalhei muito tempo atrás e que virou Lusa porque o filho inacreditavelmente resolveu escolher a Portuguesa para torcer. Minhas filhas não puderam ir, estavam fora da cidade. Meu pai não pôde ir, pois a idade não mais permite. Meu irmão não pôde ir. Não se perdoará jamais, sei disso. Ele quem me levou ao estádio desde os 4 ou 5 anos. Como faço com os meus. Porque não há sofrimento que seja tão ruim a ponto de se cortar um laço como este.

A Lusa, para mim, é família. Não é ganhar ou perder. É parte da minha história. Quantos daqueles 10 mil que foram à despedida são apelidados pelos amigos ou colegas de trabalho de "Lusa" ou de "Portuga" ou qualquer coisa do tipo? Isso possivelmente não acontece com nenhum outro clube do mundo. A Lusa vem antes do nosso nome. Não é só o fato de sermos poucos. Viramos malucos exóticos.

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Na memória

A Portuguesa estava ganhando o jogo. Levou um gol bobo. Dominou o segundo tempo inteiro. Jogou bem. Acho que não jogava melhor do que qualquer time de qualquer divisão desde, sei lá, 2013, o ano do tapetão. Merecia ter vencido. Tomou um gol aos 41. E ainda teve duas chances para o 3 a 2, uma delas já relatada aqui, em que a bola ficou caprichosamente parada dentro da pequena área, sem que um mísero pé tocasse nela para o lugar certo. No fim, vieram os aplausos, os fogos, as fotos, os vídeos e o choro.

Eu tenho pouquíssimas fotos no Canindé. Isso só aconteceu desde que passei a levar os filhotes ao estádio. E também ninguém levava máquina fotográfica para o estádio de futebol. É bom que seja assim. É na memória que ficarão momentos e momentos e mais momentos. Por incrível que pareça, naquela casa as memórias boas superam, e muito, as ruins.

Lembro-me de 1985, ano da última final de Paulista que a Lusa jogou. Do elefante no gramado na partida contra a Ponte, da semifinal contra a Ferroviária, um dilúvio danado e meu irmão me passando por cima de uma grade para dentro das numeradas cobertas, das mãos dele para as de algum desconhecido.

Foi com meu pai que vi o gol de Dener contra a Inter de Limeira, em 91, quando achávamos que o novo Pelé tinha nascido. Em 93, aquele timaço e a frustração contra o Remo. Em 94, comecei a frequentar mais o estádio, sempre de carona com meus vizinhos Lito, Dani, Rafael, André. 95, 96, 97, 98. Morri tantas vezes. Torci tanto. Vibrei tanto. Chorei tanto. Viajei tanto. Me orgulhei tanto. O registro de tudo isso está na cabeça e no coração.

Dener (c) durante a partida da Portuguesa contra o Santo André, pelo Paulistão de 1991, no Canindé
Dener (c) durante a partida da Portuguesa contra o Santo André, pelo Paulistão de 1991, no Canindé Imagem: CÉLIO JR/ESTADÃO CONTEÚDO/

Ontem, pela primeira vez na vida fui convidado para ver o jogo lá de cima, no camarote. Nunca tinha visto o Canindé lá de cima. Já xinguei muito a turma lá de cima. Mas hoje é outra a turma lá de cima. E é melhor assim. Não pude ficar. Eu tinha um compromisso com minha história. Desci, entrei pelo portão de sempre. Guardei o ingresso, como sempre.

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Vi o Canindé cheio. Vi o Canindé vazio. Vi o Canindé triste e amargurado por tanto tempo. E ontem vi o Canindé leve, sereno, consciente de que novos tempos são necessários. O Canindé nunca foi um salão de festas. Foi apenas uma casa portuguesa.

O empate com o Novorizontino foi bem triste. Mas talvez tenha sido mais condizente com nossa história. Não é uma história vencedora. É uma história de união, pertencimento e dor. Se tivesse dado tudo certo, não seria a Portuguesa.

Ontem, porém, junto com a frustração e o foguetório, tinha uma outra coisa no ar. Um sentimento tão esquecido que parece ser difícil reconhecê-lo. Havia ali uma coisinha chamada esperança. Um capítulo de mais de 50 anos se encerra. Que desenterrem o trator e os sapos que certamente alguém deixou por ali. E, na nova casa, a bola, a dona bola, resolva ser mais boazinha com a gente. Adeus, Canindé. E obrigado.

Opinião

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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