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Julio Gomes

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Para explicar o penta, é preciso voltar um ano no tempo, ao fundo do poço

23.jul.2001 - Hondurenho Saul Martinez marca de cabeça na vitória de Honduras sobre o Brasil, pela Copa América 2001 - AFP PHOTO/Antonio SCORZA
23.jul.2001 - Hondurenho Saul Martinez marca de cabeça na vitória de Honduras sobre o Brasil, pela Copa América 2001 Imagem: AFP PHOTO/Antonio SCORZA

30/06/2022 04h00

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O aniversário de hoje é o do penta. Há exatos 20 anos, em 30 de junho de 2002, a seleção brasileira chegava ao topo do mundo pela última vez. Dois gols de Ronaldo em Yokohama derrubaram a Alemanha e fizeram explodir o grito de "pentacampeão" pelas ruas de todo o país.

Mas, para contar um pouco mais sobre como o Brasil chegou lá, é preciso voltar mais um ano no tempo. É preciso voltar ao fundo do poço. A Copa América de 2001, disputada na Colômbia, marcou um momento em que a seleção brasileira parecia não ter salvação. Luiz Felipe Scolari havia acabado de assumir a bucha - em um ciclo iniciado com Luxemburgo, que teve também Candinho, Leão e muita instabilidade.

A estreia de Felipão havia sido contra o Uruguai, derrota por 1 a 0, pelas Eliminatórias - o jogo que teria marcado a quebra de confiança entre o técnico e Romário, que nunca mais seria convocado. Veio, então, a conturbada Copa América. A Colômbia vivia um momento de instabilidade política e violência, o que fez com que a Argentina, por exemplo, se recusasse a disputar o torneio. No dia do embarque da seleção brasileira, um grupo de jogadores discutia se deveria ou não viajar. No fim, só um bateu o pé: o veterano Mauro Silva. Os outros não embarcaram.

Do grupo de 22 jogadores, somente sete disputariam a Copa do Mundo no ano seguinte e apenas três começariam o Mundial como titulares. Um deles, Marcos. Felipão revelou ontem (29), pela primeira vez, em um bate-papo restrito a um pequeno grupo de jornalistas que estiveram na saga de 2002 (incluindo este colunista), que o goleiro pentacampeão do mundo ficou muito perto de não embarcar para a Colômbia.

"O Marcão, na Copa América, saiu do aeroporto e veio falar com o [Carlos] Pracidelli [preparador de goleiros]. 'Acho que não vou'. O Pracidelli só não deu um tapa na orelha dele porque não podia, falou um monte de coisa para ele, que era um 'bunda mole' se não viajasse junto com a gente. Ele era goleiro do Palmeiras junto comigo, junto com o Pracidelli e, a partir dali, no aeroporto, o Marcão mudou de ideia e disse 'devo isso a vocês e vou junto'. Algumas peças começaram ali a ser mais importantes e fomos montando uma equipe como a que montamos em 2002", contou Scolari.

O Brasil de Felipão perdeu do México, ganhou de Peru e Paraguai e, nas quartas de final, veio o desastre: derrota por 2 a 0 para Honduras na cidade de Manizales. Foi um dos momentos mais baixos da história da seleção. O time entrou em campo naquela partida com Marcos; Cris, Juan e Luisão; Belletti, Emerson, Eduardo Costa, Alex e Júnior; Denílson e Guilherme. Os laterais e Denílson seriam reservas no Mundial, Emerson foi cortado e Marcos, claro, seria um dos líderes do elenco e peça fundamental no penta.

A partir dali, Scolari viveria meses de alta tensão. Os pedidos por Romário se amontoavam, as vitórias em casa classificaram o Brasil para a Copa, mas Felipão estava longe de encontrar um time. Ele estava, sim, formando um grupo que daria certo lá na frente, mas sem nenhuma certeza de que seria assim.

"Quando chegamos da Copa América, vivenciamos uma situação diferente. Aquilo fez com que tivéssemos a quebra de um momento ruim para formar uma ideia de futuro. Quem convocaríamos, o que seria feito, uma série de detalhes. Foi onde começamos a vencer a Copa do Mundo."

"Quando perdemos na Bolívia [pelas Eliminatórias], o Marcos tomou um gol lá do meio do campo. Chegando no Rio de Janeiro, tínhamos um grupo que falou: 'professor, confia na gente, vamos classificar e vamos à Copa'. E tudo bem, eu confiei. Ganhamos da Venezuela, classificamos e começamos outra fase de trabalho. Aí é que a gente começa a ver que pode fazer uma seleção vencedora, começa a confiar um no outro. Tínhamos dúvidas de muita coisa, é fácil falar depois. A gente não sabe de tudo, não sabe de muita coisa, tem receios igual a todo mundo, tem medo, não se sabe se vai dar certo. É aí que precisa do ambiente, do envolvimento de todos."

Sem Romário, a aposta de Scolari foi em Ronaldo, que tentava voltar depois de anos dramáticos e lesões graves. Rivaldo, a estrela da seleção nos anos anteriores, também estava "baleado", tanto que o Barcelona queria que ele operasse o joelho antes do Mundial. Felipão bancou os dois. Uma conversa com Geninho, que seria o técnico campeão brasileiro com o Athletico-PR, pavimentaria o caminho para usar o sistema com três zagueiros. A decisão de última hora foi barrar Djalminha e chamar o jovem Kaká. A decisão já na Coreia, após o corte de Emerson, foi convocar Ricardinho (e não Alex).

"Em uma Copa, quem vence é um grupo, um staff, é o trabalho de todos. Eu não tomava decisões sozinho, ouvia demais o Murtosa e toda a comissão". Felipão passa uma hora falando da campanha do pentacampeonato sem falar de tática, de destaques individuais, de decisões técnicas, de dilemas estratégicos. Grupo, grupo, grupo. Até hoje, não há outra explicação que não passe pela formação da famosa "Família Scolari".

Na edição #53 do Podcast Futebol Sem Fronteiras, o jornalista Décio Lopes, que em 2002 trabalhava para uma parceira da CBF e acabou editando os vídeos motivacionais usados por Scolari na reta final de campanha, contou que o treinador pedia expressamente para que fossem utilizadas imagens de todos os jogadores. "Não pode ser só gol, não", contou Lopes, citando Scolari. "Tem que ter defesa, carrinho, desarme... todos no vídeo".

Era a constante busca da valorização do grupo. Que, em algum momento do Mundial, acabaria até em um Felipão encharcado, como ele conta.

"Teve um momento importante na nossa virada, depois do terceiro ou quarto jogo, quando fui um pouco rude com o grupo. Porque naquele ano fui mais pai do que técnico com eles, mas teve um momento em que o Murtosa me disse assim: 'estou ouvindo aqui que tem determinado jogador que não está contente, porque não está jogando. Entrou cinco minutos num jogo, o outro não sei o que, o outro acha que está sendo usado'... Eram três ou quatro jogadores. Foi quando eles estavam tomando banho de piscina, relaxando, fazendo massagem, aquelas coisas. Comecei a conversar brabo, bem brabo. Terminei ameno. Expliquei na frente dos outros por que eles não estavam jogando, mas poderiam ser úteis. Não é fácil de explicar e muitas vezes o técnico não deve explicar. Depois de tudo isso, brabo, depois não brabo e conversando com eles normalmente, ficou tudo bem e me jogaram para dentro da água. Foi o dia em que todos se sentiram valorizados, todos ficaram satisfeitos com as explicações e se sentiram parte do grupo."

O Brasil abriu a Copa vencendo a Turquia e a China e se classificou antecipadamente, em um grupo fácil. Enquanto isso, as principais favoritas ao título, França e Argentina, caíam na primeira fase. Contra a Costa Rica, Felipão utilizou os reservas e ampliou ainda mais a satisfação da "família". Nas oitavas, o jogo contra a Bélgica foi mais difícil do que o imaginado e precipitou uma troca que traria mais segurança defensiva ao time: Kléberson no lugar de Juninho Paulista.

Rivaldo decidiu contra os belgas, Ronaldinho brilhou contra os ingleses, Ronaldo eliminou os turcos na semifinal e, depois, consagrou-se contra a Alemanha. Foram sete vitórias em sete jogos, um feito raríssimo.

No final das contas, a lição de Felipão é simples e serve para qualquer empreendimento, grupo de estudos, atividades culturais ou, claro, competições esportivas. É claro que há muitos atributos necessários e não basta "se dar bem" para conseguir grandes feitos. Mas não há como chegar a grandes feitos sem uma equipe que funcione como equipe. Foi assim 20 anos atrás.