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Julio Gomes

Discussão em torno da decisão de Rogério Ceni é hipócrita

Rogério Ceni é apresentado como novo técnico do Flamengo - Alexandre Vidal / Flamengo
Rogério Ceni é apresentado como novo técnico do Flamengo Imagem: Alexandre Vidal / Flamengo

11/11/2020 04h00

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Por que a decisão de Rogério Ceni de deixar o Fortaleza para assumir o Flamengo gera mais críticas, burburinho e reações do que outras similares? Basicamente por três motivos: 1- O principal: Rogério já havia deixado o Fortaleza para assumir o Cruzeiro no ano passado. Já vimos treinador trocar de emprego mil vezes. O raro é o cara se arrepender da decisão, ser aceito de volta pelo mesmo clube, como Ceni foi, e reforçar a condição de ídolo. Como o Tricolor cearense acolheu o bom filho que à casa tornava, houve a promessa de não mais repetir a desfeita. E ela se repetiu, com a saída para o Flamengo.

Vágner Mancini não havia deixado o Atlético-GO antes, voltado, prometido ficar e saído para o Corinthians. Abel Ferreira não havia deixado o PAOK antes, voltado, prometido ficar e saído para o Palmeiras. Jorge Jesus não havia deixado o Flamengo, voltado, prometido ficar e saído para o Benfica.

São vários casos de treinadores que deixam clubes. Mas o de Ceni, com ida, vinda e promessa, acabou sendo único. E é por essa peculiaridade que o caso chama mais a atenção e gera mais críticas. Mas eu havia falado que eram três os motivos do burburinho. Os outros dois são os personagens envolvidos. O Flamengo, como clube mais popular do país, é um dos que canaliza mais defesas e ataques apaixonados e pouco racionais. E Rogério Ceni, como jogador, também despertava amor e ódio por ter sido uma figura tão marcante de um clube vencedor (e popular) e por ter personalidade forte.

Junte tudo isso e temos algumas críticas mais contundentes por ele ter deixado o Fortaleza novamente rumo a um grande clube do Sudeste. Agora, não podemos deixar de observar uma enorme carga de hipocrisia que envolve clubes, técnicos, mídia e torcedores.

Clubes de futebol mundo afora, especialmente no Brasil, nunca fizeram questão alguma de tratar treinadores com respeito e profissionalismo. São os primeiros a terem a cabeça cortada quando os resultados não chegam. Não dá para ter dó de clube algum, de dirigente algum. Sabemos bem que bastam duas ou três semanas (ou menos) para o bestial técnico ser chamado de besta e acabar no olho da rua.

Este é um motivo e tanto para que não haja relação de confiança e treinadores pensem somente neles mesmos na hora de tomar uma decisão como a que Rogério tomou.

Além do mais, é muito diferente uma pessoa, um indivíduo, entender que precisa trilhar outro caminho - pensando na família, no bolso, no futuro, na segurança, etc - de um clube de futebol, através de dirigentes que gastam dinheiro que não é deles, entender que precisa trilhar outro caminho, com outros profissionais. Para cada técnico que "abandona" um clube, temos uns mil casos de clubes que demitem um técnico.

O convite era irrecusável para Rogério e, mesmo assim, tenho certeza que ele precisou trabalhar o dilema em sua cabeça e ficou com o coração apertado por deixar o Fortaleza. Vocês acham que quantos casos de demissão de treinadores são "inevitáveis" e deixam cartolas com coração apertado?

Fico incomodado quando ouço algumas pessoas dizerem "bom, também os técnicos não podem reclamar quando forem demitidos". Sim, podem sim. É o histórico dos dirigentes brasileiros, que não pensam duas vezes antes de descartá-los, que dá aos treinadores o álibi para trocar de emprego sem muito remorso.

Esse círculo é inteiro vicioso e passa pelos torcedores, que também agem com muita hipocrisia. Não gostam quando o Benfica vem aqui levar Jesus, mas não ligam quando o Flamengo vai lá tirar Ceni do Fortaleza. Logo vem aquele discurso do "qualquer profissional tem o direito de aceitar uma proposta de trabalho melhor, blá, blá, blá".

É claro que tem. Mas técnico de clube grande de futebol não é um profissional qualquer. Partindo da premissa (nem sempre verdadeira) de que clubes têm projetos, o técnico exerce uma função fundamental, estratégica. Lida com patrimônios físico (estrutura) e humano (funcionários e atletas), representa publicamente a instituição, toma decisões de altíssimo impacto financeiro.

Vocês acham que qualquer executivo em posto de confiança de uma grande empresa de qualquer setor pode sair assim, sem mais nem menos, pagar uma multa e ir para a concorrente? Na maioria das vezes, isso está previsto em contrato. Não é assim tão simples, não.

É hipócrita dizer que técnico de futebol é um profissional como qualquer outro. Este argumento serve só para justificar o que algum torcedor ou dirigente ou jornalista-torcedor esteja a fim de justificar.

E, claro, para finalizar, não posso meter o pau nos clubes, criticar torcedores fanáticos e deixar passar em branco a própria hipocrisia que paira sob a classe de treinadores de futebol. Não há santos nessa história. Todos eles reclamam - com razão - do calendário, da falta de tempo, da instabilidade no emprego, tudo isso que já sabemos. Mas muitos se beneficiam diretamente desta constante dança das cadeiras, pulando de galho em galho, acumulando salários e multas.

Não é muito difícil resolver o problema. Há várias possibilidades. Que técnicos não possam dirigir mais do que X times no ano ou em um campeonato, que clubes sejam obrigados a pagar os treinadores até o fim da temporada sob pena de perder pontos. Enfim, soluções não faltam. Todos reclamam em público, mas, no privado, preferem deixar por isso mesmo.

Se as coisas funcionassem de forma mais racional e profissional no Brasil, faria sentido emitir algum tipo de julgamento mais contundente sobre a saída de Ceni do Fortaleza para o Flamengo. Mas as coisas não funcionam de forma racional ou profissional. É tanta bagunça que fica esquisito se aprofundar no debate ético de um caso quando tantos outros com alguma similaridade estão ocorrendo ou acabaram de ocorrer.

Segue o jogo do cada um por si. Segue a hipócrita dança das cadeiras.