Topo

Flavio Gomes

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Há 20 anos, Schumacher igualava Fangio e dizia: 'Nunca serei como ele'

Schumi foi pentacampeão da Fórmula 1 em 2002: nunca um Mundial terminou tão cedo - Andreas Rentz/Bongarts/Getty Images
Schumi foi pentacampeão da Fórmula 1 em 2002: nunca um Mundial terminou tão cedo Imagem: Andreas Rentz/Bongarts/Getty Images

Colunista do UOL

18/07/2022 04h00

Esta é parte da versão online da edição deste domingo (17/7) da newsletter de Flavio Gomes. Na newsletter completa, apenas para assinantes, o colunista também lembra de sua primeira cobertura da Fórmula 1 na Europa, em Paul Ricard, palco do GP da França de domingo. Para receber o boletim e ter acesso ao conteúdo completo, clique aqui.

************

Juan Manuel Fangio conquistou seu quinto título mundial em 1957. Por 45 anos, a marca foi inalcançável. Até o dia 21 de julho de 2002. Naquele domingo de verão na França, Michael Schumacher igualou o número de taças do argentino. O feito completa duas décadas esta semana. Merece ser lembrado. Porque não foi uma conquista qualquer.

A corrida, no simpaticíssimo circuito de Magny-Cours, no Vale do Loire, era a 11ª de uma temporada de 17 etapas. Schumacher já tinha vencido sete delas, incluindo o infame GP da Áustria — aquele em que a Ferrari ordenou a troca de posições entre Rubens Barrichello e o alemão, o que aconteceu apenas na última volta, a metros da bandeirada.

Michael buscava seu terceiro título pela equipe italiana. Em 2000, colocara um ponto final ao jejum ferrarista, que perdurava desde 1979. Livre do peso nos ombros de ser campeão a qualquer custo, Schumacher passou a empilhar recordes. Com uma estrutura mais do que azeitada, comandada por Jean Todt fora da pista e operada por Ross Brawn nos boxes, a Ferrari trucidava a concorrência sem dó nem piedade.

A superioridade era tão grande que em 2002 a equipe só foi estrear seu modelo novo na terceira prova do campeonato, em Interlagos. O carro de 2001 era o bastante para começar o ano. Mas, ao contrário do que muita gente imagina, seus carros não andavam sozinhos. Schumacher e Barrichello formavam uma dupla quase perfeita no quesito "desenvolvimento" do automóvel. O brasileiro sempre foi reconhecidamente capaz para acertar carros e encontrar soluções que extraíssem deles todo seu potencial. Não foi por outro motivo que a Ferrari, no final de 1999, foi buscá-lo na Stewart. Michael, por sua vez, era um trabalhador incansável. Naqueles tempos, testes privados eram permitidos e a equipe usava seu autódromo particular, ao lado da fábrica de Maranello, para treinar de sol a sol.

Não é modo de falar. Schumacher era adepto de tese muito usada por pintores, escultores, escritores e artistas em geral, aqueles que dizem que suas obras geniais são resultado de 10% de inspiração e 90% de transpiração — uma forma de exercer a modéstia, que sempre pega bem diante de admiradores de queixo caído. Treinava feito um louco no circuito de Fiorano, e para aproveitar bem os dias pediu que um quartinho para ele fosse montado no casarão de Enzo Ferrari, anexo à pista.

Não queria saber de perder tempo com check in, check out, chamadas da recepção, serviço de quarto, restaurantes, deslocamentos entre hotel e pista. O alojamento dispunha de uma pequena cama de solteiro, uma mesinha de canto e uma luminária. Numa sala contígua ficavam alguns equipamentos de ginástica. Ali acordava, se exercitava, tomava um frugal café da manhã, escovava os dentes e ia para o carro. Chegava à garagem antes que os mecânicos, já de macacão e sapatilha, com o capacete na mão e a boca de hortelã. Fazia uma pausa apenas para almoçar de pé com o prato de macarrão sobre uma bancada no box e voltava ao cockpit. Só parava de andar quando o manto da noite se derramava sobre a Emilia-Romagna. Carro de corrida não tem farol.

Mas, no seu caso, a transpiração não era tudo. Os 10% de inspiração ele mostrava nos finais de semana de GP. Lembro especialmente de uma passagem em Ímola, quarta prova do ano. Barrichello já tinha feito uma pole, na Austrália, com o carro de 2001. Schumacher fora o primeiro no grid da etapa seguinte, na Malásia, e Juan Pablo Montoya, de Williams, largou na frente no Brasil. Rubens vinha andando muito bem nos treinos para o GP de San Marino, e quando a classificação estava chegando ao fim, ocupava a pole provisoriamente com um tempo excelente: 1min21s155.

Parecia impossível fazer uma volta melhor, mas Schumacher tentou. Foi para a pista nos instantes finais da sessão e, com precisão cirúrgica, superou o tempo do brasileiro em meros 0s064: 1min21s091. Encerrados os trabalhos do sábado, fomos ouvir Rubinho sobre a definição do grid. A pergunta óbvia: você acreditava que Michael conseguiria uma volta melhor que a sua, que foi quase perfeita?

E Barrichello suspirou, num raro momento de resignação. "Não. Tanto que pedi para ver a telemetria dele, para ver onde e como ele conseguiu tirar tempo", começou. "O cara mudou o acerto do carro oito vezes. Na mesma volta. Isso eu não consigo fazer."

O alemão alterou diversas regulagens de seu carro a 300 por hora. A cada curva, mudava a carga de frenagem — mais para a frente, mais para trás, dependendo do ponto do circuito. Mexia no controle de tração. No mapa do motor. Na barra estabilizadora. No volume do toca fitas. Na temperatura do ar-condicionado. Apertava todos os botões no volante com maestria e precisão inimagináveis. Para ser mais rápido que o inspirado companheiro de equipe, não bastava socar o pé no acelerador. Era preciso ir além. Aquilo, nem todo mundo conseguia fazer. Conseguiu a pole. Ganhou a corrida.

Voltemos ao dia 21 de julho de 2002. Schumacher já tinha vencido cinco vezes o GP da França em Magny-Cours — em 1994 e 1995 pela Benetton, em 1997, 1998 e 2001 pela Ferrari. Havia uma guerra de pneus naqueles tempos, com Bridgestone e Michelin disputando a primazia principalmente em classificações. Montoya, cuja equipe calçava a borracha francesa, largou na pole. Barrichello, num daqueles episódios que só serviram para reforçar a crença bizarra de seus torcedores de que a equipe sabotava seu carro, ficou estancado no grid e nem largou.

Michael assumiu a liderança na janela de pit stops, mas depois teve de pagar uma punição por "pisar" na linha branca da saída de box e só foi retomar a ponta a cinco voltas do final da corrida, quando ultrapassou um jovenzinho chamado Kimi Raikkonen — que fazia seu primeiro ano pela McLaren. Recebeu a bandeira quadriculada pouco mais de um segundo à frente do finlandês. O título estava garantido. A marca de Fangio, igualada. E faltavam ainda seis etapas para o final do campeonato. Nunca um Mundial terminou tão cedo na história.

Naquele ano, a Ferrari venceu 15 das 17 etapas. Só perdeu na Malásia para a Williams de Ralf Schumacher e em Mônaco para a McLaren de David Coulthard. Schumacher foi responsável por 11 vitórias e Barrichello ganhou quatro. Até ali, o recorde de vitórias de um piloto numa mesma temporada era de nove — Nigel Mansell em 1992, e o próprio Schumacher em 1995, 2000 e 2001. A marca cairia dois anos depois, em 2004, com Michael vencendo 13 das 18 provas do campeonato. Sebastian Vettel faria o mesmo em 2013, pela Red Bull, mas num calendário de 19 etapas.

Schumacher subiu ao pódio em todas as corridas do Mundial de 2002, façanha que ninguém mais repetiu na história da categoria. Fez também sete poles e terminou o ano com 144 pontos, contra 77 de Barrichello, o vice-campeão. Foi a última vez em que conquistou um título com vitória. Em 2003 ele foi campeão no fio da navalha com um oitavo lugar no Japão, e em 2004 o hepta veio com uma segunda colocação na Bélgica.

2002 foi o ano de estreia de Felipe Massa na Fórmula 1, pela Sauber - Jed Leicester/EMPICS via Getty Images - Jed Leicester/EMPICS via Getty Images
2002 foi o ano de estreia de Felipe Massa na Fórmula 1, pela Sauber
Imagem: Jed Leicester/EMPICS via Getty Images

2002 foi também o ano de estreia de Felipe Massa na F-1, pela Sauber, e a primeira temporada da Toyota na categoria. Uma equipe tradicional, a Arrows, fechou as portas antes do fim do campeonato. Um piloto da Malásia, Alex Yoong, inscreveu seu nome como um dos piores de todos os tempos, correndo pela Minardi. A seleção brasileira conquistou o penta na Copa do Japão e da Coreia do Sul. O Santos foi campeão brasileiro na última edição da Série A disputada com o sistema de mata-mata, na famosa final das pedaladas de Robinho contra o Corinthians. E Lula se tornou o primeiro operário eleito presidente do país.

Não se sabe se Michael ainda consegue lembrar do que fez em Magny-Cours há duas décadas. Seu filho, Mick, era um garotinho de três anos de idade na época, e hoje disputa o Mundial de F-1 a bordo de um carro de uma equipe norte-americana, a Haas. Domingo que vem, na mesma França, mas num circuito diferente, Paul Ricard, carregará parte do legado do pai. Que naquele domingo, com cinco títulos na estante, disse aos jornalistas na sala de imprensa que jamais sonhou que um dia igualaria Fangio. "Porque eu nunca serei igual. Ninguém, nunca, será maior que ele."

Modesto, o rapaz.

************

LEIA MAIS NA NEWSLETTER