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Flavio Gomes

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Se Hamilton parar de repente, não se espantem

Dan Istitene/Getty
Imagem: Dan Istitene/Getty

Colunista do UOL

04/04/2022 04h00

Esta é parte da versão online da edição deste domingo (3/4) da newsletter de Flavio Gomes. Para assinar o boletim e ter acesso ao conteúdo completo, clique aqui.

Tenho sofrido mental e emocionalmente há bastante tempo, seguir em frente é um esforço constante, mas a gente tem de continuar lutando, temos muito para fazer e conquistar. Estou escrevendo para dizer a vocês que é normal se sentir assim, apenas saibam que vocês não estão sozinhos e que vamos passar por essa!"

Lewis Hamilton em mensagem sobre saúde mental publicada no perfil da Mercedes - Reprodução Instagram/Mercedes - Reprodução Instagram/Mercedes
Imagem: Reprodução Instagram/Mercedes

A frase de Lewis Hamilton pode parecer, à primeira vista, uma platitude. Foi publicada semana passada em sua conta no Instagram, numa postagem sobre saúde mental. Tem sido tema recorrente entre esportistas nos últimos tempos.

Para ficar apenas nos exemplos mais recentes e rumorosos, é só citar a ginasta americana Simone Biles, que entrou em parafuso nas Olimpíadas de Tóquio no ano passado, a tenista japonesa Naomi Osaka, que desistiu de jogar em Roland Garros porque não aguentava mais a pressão dos jornalistas em entrevistas, e outra tenista, a australiana Ash Barty, que simplesmente decidiu abandonar o esporte depois de chegar à primeira posição do ranking aos 25 anos de idade.

"It's OK to not be OK" foi frase de Osaka que estampou a capa da revista "Time" em julho do ano passado, escancarando as discussões sobre o assunto no universo do esporte. Hamilton não parece estar OK.

Depois da decisão da última temporada da F-1, em dezembro, o inglês passou a emitir alguns sinais. Muito ativo nas redes sociais, desapareceu. Foi ressurgir dois meses depois. Sorria nas fotos, é verdade, com o ar altivo e confiante de sempre. Criticou o "sistema" que lhe tirou o título — as decisões equivocadas do ex-diretor de provas Michael Masi. Falou de "perda de confiança". Reconheceu que a FIA deu um passo à frente ao reconhecer os erros de que foi vítima, mas ressalvou: "Precisamos saber ainda se é o suficiente". Por fim, prometeu que veríamos, neste ano, um Hamilton pilotando melhor do que nunca.

Com 16 pontos depois de duas corridas, ele registra seu pior começo de campeonato desde 2010, quando a categoria adotou o atual sistema de pontuação. Em Jeddah, na última prova, terminou em décimo. Pelo rádio, meio perdido, perguntou ao engenheiro se aquela posição dava pontos na classificação. Não foi capaz de superar o dinamarquês Kevin Magnussen, que estava havia quase um ano e meio sem sentar num carro de F-1 até ser chamado às pressas pela Haas para o lugar de Nikita Mazepin.

Ao estacionar o carro no Parque Fechado, não conseguiu esconder a desolação. Saiu do cockpit e ficou encostado na parede por longos segundos, sozinho, como se não soubesse aonde tinha de ir naquele momento, com quem falar, como se explicar. Por baixo do capacete, não dava para perceber seu olhar. Mas era possível intuir. Pouco depois, nas entrevistas de praxe, disse apenas que queria "voltar logo pra casa".

Hamilton não parece estar OK. A má forma da Mercedes pode ser um dos motivos. O carro é complicado, nervoso, ruim de dirigir, lento nas retas, instável nas curvas. Dificilmente a equipe vai conseguir melhorá-lo a tempo de permitir que seus pilotos entrem na briga contra uma Ferrari e uma Red Bull que começaram o Mundial com força evidente. Essas coisas levam tempo.

Para um piloto que entrou nas últimas oito temporadas como favorito ao título — e ganhou seis deles —, encarar sem ganchos, cordas e botas apropriadas uma montanha que já escalou tantas vezes pode parecer um esforço exagerado. Ainda mais por saber, de antemão, que desta vez não vai chegar no topo.

Mas isso não é tudo. Carros ruins fazem parte da vida de qualquer piloto, em algum momento eles passam por suas vidas e não há muito mais a fazer do que esperar pelo próximo, e torcer para que seja melhor. Só que Lewis não é um garoto. Tem 37 anos. Os meninos com quem tem de bater roda são 10, 15 anos mais novos. Estão começando a subir a montanha agora, animadíssimos. Quando pegam carros ruins pela frente, sabem que têm tempo de sobra para esperar por um bom. Uma hora vai aparecer.

Hamilton já passou por tudo isso. Vice-campeão em 2007 e campeão em 2008 pela McLaren, passou cinco anos na seca até a Mercedes acertar a mão em 2014 e oferecer um equipamento que lhe permitiu bater todos os recordes importantes da F-1 e se transformar no maior piloto da história. Esse ciclo, longuíssimo, acabou. Uma hora iria acabar. O que fazer agora? Remar tudo de novo? Quanto tempo isso levaria?

A F-1 é fatigante. Mais ainda com o inchaço do calendário, que prevê 23 corridas neste ano num período de oito meses. As viagens são longas e cansativas. É muito tempo fora de casa. São horas e horas dentro de um autódromo analisando dados, discutindo com engenheiros, traçando estratégias. Quando o objetivo alcançável é a vitória, o esforço vale a pena. Lewis sabe disso porque vem ganhando tudo há oito anos. Mas não é bobo. Também sabe que se fizer tudo igual agora, o resultado será outro. Não é mais atrás de vitórias que ele está correndo. E, sim, de consertar um carro que nasceu mal para tentar não ficar muito para trás. Com chance de não conseguir.

Andar atrás, para um piloto como Hamilton, na altura da vida em que está, é quase uma penitência. Um suplício. Martírio semelhante ao que passa hoje um tetracampeão como Sebastian Vettel, que nem correu as duas primeiras provas do ano por causa da covid. Volta na Austrália, no próximo fim de semana, para guiar uma carroça que não vai levá-lo a lugar algum. Nem para se divertir dá.

A sensação que tenho é que Hamilton percebeu que o tempo já não passa para ele com a mesma velocidade de quando ele tinha 20 anos. Há outras coisas que contribuem para essa aparente exaustão do piloto inglês. Ele não tem muitos interlocutores na F-1. Nos desfiles de caminhão antes das corridas, costuma ficar quieto, sozinho, isolado num canto. Conversa pouco.

Seus interesses fora da pista — o engajamento político, a defesa do meio ambiente, as discussões sobre racismo e direitos das minorias — não atraem a atenção dos colegas, que cada vez mais o veem como uma esfinge distante e enigmática. Na Arábia Saudita, ficou quatro horas reunido com os demais para decidir se iriam ou não disputar o GP enquanto tanques de combustível ardiam em chamas a menos de 20 km dali, atingidos por mísseis. Não queria correr. Foi voto vencido.

Hamilton está ficando cansado desse negócio. Mental e emocionalmente, como escreveu, está sofrendo. Fui bisbilhotar suas redes neste fim de semana para tentar captar algum outro sinal. Sua última manifestação tinha sido uma retuitada do perfil da Nasa, celebrando a descoberta, pelo velho e bom telescópio Hubble, da estrela mais distante jamais observada pelos terráqueos que habitam este planeta. Fica a 12,9 bilhões de anos-luz daqui.

Tive a impressão de que, se pudesse escolher, Lewis se mandava para os confins do universo. Não se espantem se, do nada, ele decidir apanhar um táxi para alguma estação lunar por aí.

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