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Flavio Gomes

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Ditadura, refinaria em chamas, F-1: Brasil, 1972; Arábia Saudita, 2022

Leclerc e Verstappen se abraçam no GP da Arábia Saudita de Fórmula 1 - Divulgação/Red Bull
Leclerc e Verstappen se abraçam no GP da Arábia Saudita de Fórmula 1 Imagem: Divulgação/Red Bull

Colunista do UOL

28/03/2022 04h00

Esta é parte da versão online da edição deste domingo (27/3) da newsletter de Flavio Gomes. Para assinar o boletim e ter acesso ao conteúdo completo, clique aqui.

Jeddah, março de 2022. Um GP de Fórmula 1 está marcado para acontecer num país governado há séculos por uma ditadura que o Ocidente só não trata como o que é porque, afinal, é de lá que vem o combustível que o move. A menos de 20 km do circuito, instalações da estatal petrolífera são atacadas por mísseis lançados por drones e um enorme incêndio toma conta do local. O atentado é reivindicado por rebeldes houthis que lutam contra o governo do vizinho Iêmen, apoiado pela Arábia Saudita. A guerra civil já dura oito anos. Até agora, estima-se que 300 mil pessoas morreram.

A corrida acontece normalmente. Max Verstappen, da Red Bull, é o vencedor. Charles Leclerc e Carlos Sainz, da Ferrari, completam o pódio em segundo e terceiro.

Brasil, março de 1972. Um GP de Fórmula 1 é marcado para uma quinta-feira, dia 30, antes dos feriados da Páscoa. A "Folha de S. Paulo" estampa duas manchetes em sua Primeira Página.

A principal: "Em São Paulo, um dia de comemorações". A foto mostra o governador biônico Laudo Natel sorridente ao lado do general Humberto de Souza Melo, comandante do II Exército. Ele celebra "as profundas raízes democráticas e populares das Forças Armadas (...) no oitavo aniversário da Revolução de 31 de Março". O militar lembrou "a desordem social que reinava no país, assim como a colaboração do empresariado na luta contra a subversão".

A segunda manchete: "Hoje é dia de grande espetáculo". Sob o título, uma foto de Emerson Fittipaldi com sua mulher, Maria Helena, outra de Ronnie Peterson, piloto sueco da March, e uma menor de Luiz Pereira Bueno batendo o recorde do anel externo de Interlagos e recebendo a bandeirada de Chico Landi. "Às 16h, o maior espetáculo do automobilismo brasileiro em todos os tempos", celebra o jornal, onde "estarão competindo os poderosos carros da Fórmula 1".

A corrida acontece diante de um público estimado — talvez seja melhor dizer "chutado" — de 200 mil pessoas. O argentino Carlos Reutemann, da Brabham, vence.

Naquele mesmo dia, de madrugada, uma explosão causa um gigantesco incêndio em Duque de Caxias, região metropolitana do Rio de Janeiro. Tanques de gás liquefeito de uma refinaria da Petrobras são consumidos pelo fogo. Informações "extraoficiais" falam em 11 mortos e pelo menos 62 pessoas atendidas com ferimentos graves em hospitais fluminenses. O governo militar não presta nenhum esclarecimento sobre as vítimas, nem sobre as causas do acidente. Soldados do Exército e do Corpo de Bombeiros afastam curiosos e jornalistas na base da porrada. Lamenta-se pela destruição das instalações, consideradas "um orgulho nacional".

Ditaduras, refinarias em chamas, corridas de Fórmula 1. Separadas por meio século.

Quarta-feira, dia 30, o primeiro GP de F-1 disputado no Brasil completa 50 anos. Foi organizado pelo empresário Antonio Carlos Scavone, que um ano depois seria uma das 123 vítimas fatais da queda de um Boeing da Varig que fazia um voo entre o Rio de Janeiro e Paris. O 707 pegou fogo por causa de uma bituca de cigarro jogada na lixeira do toalete dos fundos do avião e teve de fazer um pouso forçado em uma plantação de cebolas nas proximidades do aeroporto de Orly, na capital francesa. Onze pessoas sobreviveram — um passageiro e dez tripulantes. Entre os mortos estavam também o cantor Agostinho dos Santos e o senador Filinto Müller, ex-chefe da polícia política de Getúlio Vargas.

A prova foi realizada como evento teste, cujo objetivo era o de incluir o Brasil no calendário da F-1 a partir de 1973. Nem todas as equipes e pilotos que disputavam o Mundial vieram para cá. Os estrangeiros fizeram várias exigências e os organizadores, entre outras coisas, tiveram de providenciar 50 Fuscas e Opalas para os integrantes dos times circularem pela cidade. Apenas 12 carros foram inscritos, e somente seis terminaram a corrida. Um brasileiro, Wilson Fittipaldi Jr., chegou em terceiro. Seu irmão Emerson, pole position e favorito à vitória com a famosa Lotus preta e dourada patrocinada pelos cigarros John Player Special, abandonou na 31ª das 37 voltas quando liderava. A suspensão não aguentou e ele rodou na reta dos boxes. Luiz Pereira Bueno foi o sexto colocado. José Carlos Pace, que hoje dá nome ao autódromo, só conseguiu completar uma volta com um carro alugado pela equipe de Frank Williams. Também quebrou.

Scavone considerou o evento um sucesso, apesar da organização caótica. Grande parte do público invadiu o circuito sem pagar ingresso e, na falta de segurança e fiscalização, alguns jovens chegaram a promover rachas de motocicleta pelos quase 8 km do traçado durante a madrugada. Placas de publicidade foram arrancadas das margens da pista e se transformaram em barracas improvisadas pelos que resolveram acampar no autódromo. As despesas para que o empreendimento fosse levado a cabo foram calculadas em 2 milhões de cruzeiros. A maior parte desse dinheiro foi bancada pelos patrocinadores da corrida: Souza Cruz, Bardahl, STP, Dulcora, Alitalia e Firestone. Dirigentes da FIA aprovaram a corrida e, de fato, incluíram o país no Mundial.

Fazia "um calor de fundir a cuca de qualquer um", segundo relato da mesma Folha na edição do dia seguinte, 31 de março, aniversário da "Revolução" de 1964. A seção de esportes do jornal registrou que "moças confessaram ter vindo a Interlagos com grupos de amigos ou namorados, não estando "muito por dentro desse negócio de corrida'".

No dia anterior, texto distribuído pelos órgãos de segurança do governo informava que em 1971 "a subversão matou 23 pessoas e feriu 73". Seguia uma breve biografia de cada uma dessas vítimas. Uma delas, o empresário dinamarquês Albert Hening Boilesen, presidente da Ultragaz, "covardemente assassinado a rajadas de metralhadora por terroristas quando transitava pela alameda Casa Branca". Boilesen foi um dos maiores apoiadores do aparelho de repressão da ditadura militar e tinha prazer em assistir às sessões de tortura de presos políticos, tendo importado dos EUA uma máquina de dar choques elétricos que ficou conhecida como "pianola de Boilesen".

Brasil, 1972. Arábia Saudita, 2022.

A Fórmula 1 chegou aqui em meio a uma ditadura abjeta e não teve grandes escrúpulos para montar sua tenda no país. Fez o mesmo na Argentina governada por militares nos anos 70. E na África do Sul do apartheid. Correu na Rússia do agora proscrito, inclusive pela F-1, Vladimir Putin. Que, até outro dia, era gente boa o bastante para, inclusive, entregar troféus no pódio de Sochi.

Na noite de sexta-feira, enquanto bombeiros tentavam apagar o incêndio no depósito da Aramco, a petrolífera saudita que, entre outras coisas, é patrocinadora máster da F-1, os 20 pilotos da categoria se reuniram após o segundo treino livre para discutir o que fazer. O encontro entrou pela madrugada do sábado. Alguns não queriam correr. Há relatos de que pelo menos meia dúzia defendia a não realização da prova: Hamilton, Bottas, Gasly, Alonso, Leclerc e Russell. Acabaram sendo convencidos pelos dirigentes de que não havia lugar mais seguro no país do que o circuito batizado de Corniche, às margens do Mar Vermelho. Um dos argumentos: "Eles não atacam civis, só infraestrutura". Ouviram isso de Mohammed Ben Sulayem, novo presidente da FIA, nascido nos Emirados Árabes.

Correram, e ninguém mais falou no assunto. Fizeram uma boa prova, até. A vitória de Verstappen foi bonita, cerebral, arquitetada do início ao fim, quando ultrapassou Charles Leclerc cirurgicamente para escapar do troco nos trechos de asa móvel, nas últimas voltas da corrida.

Ninguém mais vai falar do ataque à refinaria da Aramco. Como não aconteceu nada no autódromo, a F-1 sustentará até o fim dos tempos o "acerto" da decisão de correr no país. Da mesma forma como nunca se manifestou sobre as torturas nos porões das ditaduras brasileira e argentina, nem se preocupou muito em correr num país que tinha a discriminação racial como política de Estado.

A F-1 não está nem aí.

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