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Fábio Seixas

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Há 75 anos nascia a lenda Ferrari, o mais encantador dos fracassos

O italiano Franco Cortese, na primeira corrida da história da Ferrari, há exatamente 75 anos - Reprodução
O italiano Franco Cortese, na primeira corrida da história da Ferrari, há exatamente 75 anos Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

11/05/2022 04h00

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"Um fracasso promissor". Realismo e otimismo numa frase singela proferida há exatos 75 anos. Os reveses ficaram para trás. A promessa se cumpriu com trajetória brilhante, única.

Em 11 de maio de 1947 nascia a maior marca da história do automobilismo, a escuderia que mais rasgou e encantou circuitos mundo afora. Uma lenda. Há 75 anos a Ferrari disputava sua primeira corrida.

"Um fracasso promissor", definiu Enzo Ferrari, quando Franco Cortese abandonou o GP de Piacenza a duas voltas do fim, com problema numa bomba de combustível. Até então ele liderava a prova, que abria a temporada italiana de corridas — a Fórmula 1 só surgiria três anos depois, unindo equipes de vários países e algumas das principais provas do mundo.

Era um início. Mas também um fim. Aos 50 anos, ele deixava de trabalhar para os outros e iniciava o sonho de uma escuderia própria, com seu nome e sua marca: o Cavallino Rampante.

De origem humilde, Ferrari recebeu apenas a educação básica, lutou na 1ª Guerra Mundial e precisou encontrar uma forma de sobreviver quando o pai e o irmão morreram, em 1916, vítimas da gripe. Sua salvação foi o automobilismo, com o qual se encantou ainda criança. Bateu na porta da Fiat, foi rejeitado, mas nos anos seguintes correu por CMN e Alfa Romeo.

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O jovem Enzo Ferrari, que teve relativo sucesso como piloto nos anos 20
Imagem: Reprodução

Teve relativo sucesso, venceu provas nos anos 20, mas nunca lidou bem ao ver colegas morrendo nas pistas. A decisão de abandonar o volante veio em 1932, quando seu filho, Dino, nasceu. Lançou-se, então, em outra empreitada: construir carros e organizar times de corrida.

Foram anos de dedicação à Alfa Romeo, até um desentendimento em 1939. Saiu com o compromisso de não montar uma equipe própria por quatro anos. Fundou a Auto-Avio Construzioni, dedicada a construir peças de carros. Mas veio então a 2ª Guerra, e Ferrari precisou colocar seu maquinário à disposição de Mussolini para a produção de armas.

Com o fim do conflito, e passados os anos de "quarentena" do emprego anterior, resolveu que era hora de usar toda a expertise acumulada em anos de mão na massa e lançar sua marca própria. Em 1947, já naquela que se tornaria a sede mítica de Maranello, fundou a Ferrari.

Foi tudo muito rápido. Em março, uma Ferrari saiu da garagem pela primeira vez para testar o motor. Dois meses depois, o modelo 125 S alinhou em Piacenza com Cortese ao volante.

"Um fracasso promissor?". A decepção durou apenas nove dias: em 21 de maio, a Ferrari conquistou sua primeira vitória, em Roma, com Cortese. Foram 40 voltas numa pista de rua a uma média de 88,5 km/h. Ao longo daquele ano, a escuderia venceria mais cinco provas.

Este post não tem a pretensão de resumir a história da escuderia italiana. Nem seria possível. Mas é importante entender as origens da marca, assim como dimensionar seus feitos.

As duas dimensões ajudaram a criar o mito.

A Ferrari estreou na F1 na segunda corrida da categoria, Mônaco. É a única equipe a disputar todos os 73 Mundiais da história. É a recordista de GPs disputados (1.035, contra 907 da McLaren, segunda colocada), vitórias (240, ante 183 da McLaren), poles positions (233, versus 156 da McLaren) e melhores voltas (257, 98 a mais que a McLaren).

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Michael Schumacher comemora vitória no GP da China de 2006, sua 72ª e última pela Ferrari
Imagem: Reprodução

É, ainda, a equipe com mais Mundiais de Construtores: 16, seguida pela Williams, com 9. E é aquela que mais títulos deu a seus pilotos: 15, três a mais do que a McLaren.

Mas a Ferrari não é uma lenda apenas por suas glórias. Talvez tenha se tornado o que se tornou, fundamentalmente, por seus momentos miseráveis.

Só na F1, seis pilotos morreram pilotando os carros vermelhos. Como se morrer não bastasse, vários desses episódios tiveram contornos dramáticos, cinematográficos.

Em 1961, em Monza, por exemplo, o alemão Wolfgang Von Trips morreu um horrível acidente que matou 15 torcedores: seu carro atravessou um alambrado após bater na Lotus de Jim Clark e decolar. Em 1967, em Mônaco, a Ferrari de Lorenzo Bandini pegou fogo ao bater numa barreira de feno. Isso só potencializou o incêndio, e ele morreu três dias depois. Há 40 anos, em maio de 1982, Gilles Villeneuve, um herói ferrarista, bateu no March de Jochen Mass, decolou e seu carro desmanchou ao bater no solo _seu capacete foi parar a 50 m dali.

Houve ainda os períodos de fila. O maior deles, de 1979 a 2000, quando Michael Schumacher enfim conquistou o primeiro título pela Ferrari, emendando uma sequência de outros quatro. Nesse intervalo, a escuderia muitas vezes parecia um exército de Brancaleone, uma trupe simpática e com muita história, mas sem condições de competir com as equipes inglesas. Quem, como eu, começou a ver F1 nos anos 80, sabe do que estou falando.

Aí entra a psique humana. Como já vimos tantas vezes com clubes de futebol, o jejum só fez crescer a admiração, o fanatismo, a torcida ao redor do mundo. Vai entender...

A própria história de Enzo Ferrari foi marcada por uma tragédia indelével. Em 1956, seu filho Dino, que sofria de distrofia muscular, morreu. Foi um golpe duro. O patriarca tornou-se um homem recluso, misterioso, mas eternamente apaixonado pelos seus carros e um grande combatente nos bastidores políticos da F1.

Numa rara entrevista à "Autosport", em 1986, falou sobre Ayrton Senna. "Ah, Senna. Achamos que seria inapropriado falar com a Marlboro, que paga nossos pilotos, sobre as pretensões salariais que ele nos apresentou. Eram, digamos... imaginativas!"

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Os ferraristas Charles Leclerc (à dir.) e Carlos Sainz celebram a primeira fila no grid de Miami, no último sábado
Imagem: Ferrari

É emblemático que, 75 anos depois daquela largada em Piacenza, a Ferrari hoje lidere os Mundiais de Construtores e Pilotos.

Talvez não dure muito tempo, é verdade. Mas este campeonato é só mais um capítulo de uma longa história.

Quantas marcas não sucumbiram nesses 75 anos? Quantos gigantes não ficaram pelo caminho? Quantos homens não desistiram?

A Ferrari segue nas pistas.

Nunca houve fracasso tão duradouro. E tão encantador.