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Fábio Seixas

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

"Senna odiava que encostassem nele", diz livro

Senna no grid de Ímola em 94, naquela que o fotógrafo Graeme Glew acredita ser a última foto do brasileiro sem capacete - Graeme Glew/Acervo pessoal
Senna no grid de Ímola em 94, naquela que o fotógrafo Graeme Glew acredita ser a última foto do brasileiro sem capacete Imagem: Graeme Glew/Acervo pessoal

Colunista do UOL

14/04/2021 13h38

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Está indo hoje para a gráfica um livro que já nasce clássico, que já surge histórico e que, coisa rara, preenche uma lacuna numa história que já foi tão esmiuçada nos últimos 27 anos.

"Ímola 1994" é um relato preciso e emocionante de um jornalista que estava lá.

Flavio Gomes era repórter da Folha de S.Paulo e da rádio Jovem Pan. Viveu intensamente aqueles dias. Sofreu suas consequências nas semanas seguintes. E viu sua vida mudar pra sempre.

Mas ele não se atém àquele fim de semana trágico. Não é um livro apenas sobre Ímola. Ao longo de 27 capítulos, traz relatos sobre jornalismo, sobre viagens, sobre o difícil relacionamento com ídolos do esporte, sobre o automobilismo daqueles anos 80 e 90 _parece que sou citado algumas vezes, espero não ter que acionar meus advogados.

Flavio, quem me segue sabe disso, é um irmão que a profissão me deu. É o cara que literalmente desenhou um mapa para que eu chegasse a uma pensão em Nurburgring para minha primeira cobertura internacional de F-1. E que até hoje segue apontando caminhos para novas gerações, um dos caras mais generosos que já conheci.

livro senna - Divulgação - Divulgação
"Ímola 1994", novo livro do jornalista Flavio Gomes
Imagem: Divulgação

Em estradas, aeroportos e mesas de jantar mundo afora, ouvi centenas de vezes trechos do que foram aqueles anos de cobertura e do drama que acompanhar a morte de Senna. Sempre me diverti, sempre me emocionei, sempre descobri detalhes novos.

Que bom que o Flavio resolveu sentar em frente ao computador e despejar todo seu talento na missão de condensar tantos causos num livro. Até a foto que ilustra a capa foi feita por ele, a única que ele conseguiu salvar na loucura daquele dia.

É obrigatório para quem gosta de F-1 e jornalismo.

De quebra, tem prefácio de Mário Magalhães, outro craque da profissão, ex-repórter e ombudsman da Folha, autor da biografia de Carlos Marighella e de "Lutas e Lágrimas", obra que conta o que foi o Brasil de 2018.

O livro já foi lançado em pré-venda pela Editora Gulliver. Para comprar, é só mandar um e-mail para o próprio Flavio, pelo e-mail: flaviogomes@warmup.com.br, com "Ímola 1994" no assunto.

Quero deixar claro que o autor é sovina e que tirei dinheiro do bolso para comprar o meu exemplar. Mas pelo menos ele presenteou o blog, e vocês, com um trecho do livro. Que revela um pouco mais sobre a faceta reservada e obcecada do tricampeão.

Daqui pra baixo, é com o Flavio. Aproveitem...

Senna odiava que encostassem nele. E quando aparecia algum cabra vestindo camiseta da seleção ou boné do Banco Nacional, ou ambos, enrolado numa bandeira do Brasil, era batata. O cara tentava um contato físico, queria passar o braço em torno de seus ombros, falava alto e espalhava perdigotos miseráveis. Esses personagens brotavam do chão. E, em algumas corridas, eram muito numerosos.

O GP de Portugal, no Estoril, era especialmente dramático nesse particular. Apareciam torcedores brasileiros de todos os cantos, e eles partiam para cima de Senna com enorme desenvoltura e atrevimento. Faziam questão de conversar com o piloto, mostrar como conheciam sua carreira, demonstrar familiaridade com o tema e obter dois troféus: um autógrafo e uma foto.

Profissional compenetrado e obcecado pelo trabalho, Senna se incomodava muito com essas pessoas, especialmente quando partiam para as vias de fato - o famoso abraço para a foto. Não existiam ainda as selfies, e o fã desembestado, quando vislumbrava a chance, sacava de sua máquina fotográfica e entregava a quem estivesse por perto para registrar o momento histórico. Depois que revelasse a foto, mandaria ampliar e emoldurar para colocar num porta-retrato na mesa de trabalho, ou na parede às suas costas.

Quis o destino de uma pobre alma dessas que quem estivesse por perto de Senna no momento da aproximação infrene fosse eu, naquele fim de semana ensolarado de setembro de 1991 no Estoril. Conversávamos rapidamente enquanto caminhávamos para o motorhome, estava tirando alguma dúvida sobre alguma bobagem do carro, nada muito importante, quando o cidadão apalermado se achegou aos gritos e foi agarrando o piloto sem se importar minimamente com a interrupção do diálogo alheio, enquanto me entregava uma câmera que parecia cara e sofisticada. "Bate uma foto aí!", ordenou, sem se importar com o nítido desconforto do ídolo.

Peguei a máquina, simulei a correção do foco e fiz a foto. Mas na hora do enquadramento, desviei o equipamento ligeiramente para a direita, de modo que fosse registrado apenas o parvo abobalhado, tirando Senna da imagem. "Mais uma, mais uma se der problema na hora de revelar!", exigiu o pascácio aos berros, e no segundo clique abaixei a lente de maneira imperceptível e tirei a foto dos pés dos dois personagens. Devolvi a câmera, ele a recolheu sem agradecer, falou mais alguma besteira descartável para Senna, deu-lhe um tapa nas costas - algo que ele só não odiava mais do que ser ultrapassado na pista - e seguiu seu caminho exultante, já imaginando a inveja que causaria nos amigos quando chegasse ao Brasil e mandasse revelar o filme.

"Folgado do caralho", Ayrton resmungou quando o estulto se afastou vibrando como se tivesse marcado um gol. "Esse aí vai me odiar para o resto da vida quando mandar revelar as fotos", respondi. "O que que você fez?", Senna perguntou, já antevendo a patifaria. "Primeiro tirei uma foto só dele. Depois, do joelho para baixo."

Poucas vezes vi Senna se divertir tanto. "Você não fez isso!", falou, quase gargalhando. "Lógico que fiz, puta mala, o cara não vê que estamos conversando? Interrompe os outros, não pede licença, não diz por favor, vai se foder!" E ele rindo: "Nossa, baixinho, como você é filho da puta!".