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Eliana Alves Cruz

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Retrocesso e avanço: Vai ter Copa América, mas dona Aída vacinou

Aída dos Santos, ex-atleta olímpica do Brasil, e sua filha, a jogadora de vôlei Valeskinha - Arquivo pessoal
Aída dos Santos, ex-atleta olímpica do Brasil, e sua filha, a jogadora de vôlei Valeskinha Imagem: Arquivo pessoal

03/06/2021 04h00

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"Todos os dias quando acordo/ Não tenho mais o tempo que passou/
Mas tenho muito tempo/ Temos todo o tempo do mundo"
Tempo perdido - Legião Urbana

Uma coisa parece não ter nada a ver com outra, mas tem. Esta semana tivemos dois símbolos fortes da nossa convivência (e conivência) com o passado tenebroso e do futuro que promete, apesar de tudo, dias melhores: a confirmação da realização da Copa América de Futebol no Brasil e a vacinação do ícone para o esporte nacional que é dona Aída dos Santos.

Em setembro de 2020 escrevi neste espaço um texto relacionando a famosa pandemia de Gripe Espanhola, futebol e a nossa atual pandemia de Covid 19. Nele citei que a pandemia de 1918 não parou as obras para sediar o Campeonato Sul-Americano (atual Copa América), que aconteceria no Rio de Janeiro, na sede do Fluminense, mas ao menos suspendeu por um ano a competição.

Passaram-se 103 anos, outra pandemia assola a humanidade e desta vez fazemos diferente...para pior. Vamos realizar o evento apesar da montanha fantasmagórica de corpos que se aproxima em ritmo acelerado do meio milhão de corpos. Pessoas que tinham um rosto, afetos, projetos e sonhos, mas perderam o direito à vida graças ao negacionismo. É... Sem dúvidas, regredimos.

No entanto, como nada é simples por aqui, também vemos que um passo foi dado em direção a um futuro menos injusto quando vemos uma ex-atleta como dona Aída dos Santos, de 84 anos (que também já foi tema desta coluna), viva, disposta, com sua máscara no rosto e manga da blusa erguida para receber sua vacina. Uma atleta negra que passou pela menos valia de que são alvo as mulheres com sua origem, que foi ignorada solenemente pela delegação do próprio país até chegar no lugar que consideravam improvável para ela.

É lindo ver, por intermédio dela, a conquista de um ciclo de vida pleno. Direito que não tiveram as centenas de milhares de brasileiros e brasileiras que perderam a vida devido ao enorme apego a um passado que deveria permanecer apenas nos livros de história.

A "indústria do futebol", em 1918, não parou porque o presidente do Fluminense à época, Arnaldo Guinle, muito bem relacionado com o Governo Federal, levou a competição para as dependências do clube, mesmo a agremiação tendo em determinado momento todos os atletas contaminados e perdendo um de seus maiores craques: Archibald French.

O chefe do executivo que tão bem se dava com Guinle, também não escapou. O Presidente da República, Rodrigues Alves, não terminou o mandato, pois foi fulminado também em 1918, pela mesma pandemia que adiou a competição e matou Archibald. Presidente morto, presidente posto. Seu vice e substituto, Delfim Moreira, assumiu e certamente ficou feliz em ver a bola rolando no campo do Flu.

Aqui chegamos e aqui continuamos deixando a bola rolar e ser usada por interesses diversos como cortina de fumaça para os graves problemas que nos atormentam. Aqui seguimos discutindo inutilidades enquanto a morte ronda, espreita, ataca e vence. O vírus tem visão de jogo. Nossos dirigentes, não. Nunca tiveram.

Dona Aída está aí, simbolizando a resistência e sinalizando um futuro possível... mas só se a gente quiser e fizer.