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Eliana Alves Cruz

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

1968, o ano olímpico que nunca termina

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Imagem: Reprodução

22/04/2021 04h00

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"A minha alma 'tá armada /
E apontada para a cara do sossego/
Pois paz sem voz, paz sem voz/
Não é paz é medo"
O Rappa

A notícia chegou na tarde de ontem, 21 de abril: Protestos e mensagens políticas seguirão proibidas nos Jogos Olímpicos. Isto significa que se os velocistas norte americanos Tommie Smith e John Carlos resolvessem levantar seus punhos como fizeram no pódio dos Jogos do México, em 1968, seriam igualmente punidos em 2021. E que ninguém pense em ajoelhar-se ou fazer qualquer outro gesto que comunique uma ideia.

Segundo o Comitê Olímpico Internacional, a decisão está apoiada em uma pesquisa feita com mais de 3.500 atletas que demonstra que 70% acreditam "não ser apropriado demonstrar ou expressar seus pontos de vista" no campo de disputas ou nas cerimônias de abertura e encerramento. A mesma pesquisa também teria apontado que 67% também desaprovam demonstrações no pódio.

Conversando sobre isso com um colega, ele me fez a seguinte provocação: "Imagine se todos os atletas resolvessem levantar bandeiras de suas causas no pódio? O evento viraria um caos!" E me pus a imaginar esta cena...achei-a linda! Mesmo que as causas não fossem as que eu apoio. Achei que daria um panorama real sobre o que o mundo pensa, sobre o que incomoda o planeta, sobre o que essas pessoas que representam a excelência da performance do corpo humano pensam; sobre o que realmente está acontecendo em cada nação que consegue colocar uma bandeira naquele caro e cobiçado pódio.

Imaginei que o evento poderia passar a significar bem mais, poderia despertar bem mais o interesse adormecido pela sopa de anestésico das propagandas. Visualizei famílias inteiras sentadas na frente da TV curiosas para saber qual seria a mensagem do atleta ou da atleta do dia. Pensei que estas mesmas famílias poderiam então conversar, debater, formar suas opiniões e que os profissionais de mídia envolvidos no evento teriam excelentes informações para trabalhar. Ficaria na decisão de cada competidor se gostaria de silenciar para que as pessoas apenas falassem de seu feito olímpico ou se gostaria de agregar ou dizer algo mais com um simples gesto. Ok, este é um livre arbítrio impensado para um evento mega multi trilhardário, sabemos...

No entanto, caso esta pesquisa do Comitê Olímpico esteja mesmo correta, significa que grande parte da juventude envolvida com os Jogos prefere o silêncio para as línguas e, principalmente, para os ouvidos. A juventude que ultrapassa limites inimagináveis sendo mais alta, mais forte e mais rápida não sabe e não quer lidar com a opinião, preferindo renunciar ao direito à própria voz. Refleti como é baixo, para estas pessoas, o valor das convicções e como é alta a certeza de que elas podem ofuscar seus feitos atléticos ao invés de agregar valor ainda mais precioso. Pensei na alta dose de medo envolvida em tudo isso.

No dia seguinte ao veredito que condenou o policial pelo assassinato de George Floyd, a notícia da pesquisa do COI, mais que a da proibição, soa anacrônica com um tempo em que, enfrentando uma pandemia cruel, jovens do mundo todo se ergueram para gritar "black lives matter" e abalaram o planeta.

A imagem de Tommie e John então surge gigante de um passado não muito distante na linha do tempo da história, mas que parece emergir de outro milênio no campo dos direitos humanos. A Pesquisa do COI demonstra que a coragem que tiveram ainda é a arma mais temida e poderosa. O ano de 1968 ainda ecoa em 2021.

" (...) As grades do condomínio são para trazer proteção
Mas também trazem a dúvida se é você que 'tá nessa prisão
Me abrace e me dê um beijo
Faça um filho comigo
Mas não me deixe sentar na poltrona no dia de domingo, domingo
Procurando novas drogas de aluguel
Nesse vídeo coagido
É pela paz que eu não quero seguir admitindo"