Topo

Eliana Alves Cruz

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Pioneiras não vistas pela multidão: Mary Dalva Proença Cerqueira

Juliana Veloso e Tammy Takagi competem no trampolim de 3 m sincronizado nas Olimpíadas do Rio - Reuters
Juliana Veloso e Tammy Takagi competem no trampolim de 3 m sincronizado nas Olimpíadas do Rio Imagem: Reuters

02/03/2021 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

"Nas duas faces de Eva / A bela e a fera
Um certo sorriso /De quem nada quer"
(Cor de rosa choque - Rita Lee)

O mês de março chegou e com ele sua cor rosa, aquela que a sociedade impôs como marca de delicadeza, de poesia, de suavidade e feminilidade. Aquela tonalidade que encharca tudo o que é destinado a mulher nos mercados, nas lojas, nas imagens... a cor de rosa chá, bebê, choque. O dia oito de março destinado à reflexão sobre a condição feminina no mundo, seus desafios, lutas e exclusões é massacrado pelo insustentável peso do rosa.

No esporte, este apagamento da batalha que é ser mulher numa sociedade construída para que homens reinem, brilhem e conduzam, se mascara na imagem da guerreira, da musa e/ou da pioneira. Esta última será nosso alvo este mês. Algumas das que abriram alas, mas que soterramos nas páginas do passado. Páginas nada cor-de-rosa.

Começamos com um salto para o ano de 1956, nos Jogos Olímpicos de Melbourne, aonde o Brasil chegou com uma delegação de 48 jovens competidores e apenas uma mulher: Mary Dalva Proença. A saltadora paraense única classificada para disputar a prova de plataforma de saltos ornamentais.

Aproveitando a transferência do pai de Belém para o Rio, a jovem deu vazão a vontade de praticar esportes e fez carreira no clube Fluminense. Mary completará nesta quarta-feira, dia 3/03, 86 anos e não dá para não pensar em sua solidão nos anos 50 do século passado, como única a vestir o uniforme brasileiro. Não dá para não pensar também na coragem dela, pois da mulher se esperava um marido, um lar, filhos, roupas cor-de-rosa... É possível imaginar o que não disseram familiares, amigos, desconhecidos e a luta que deve ter sido para conseguir embarcar. Uma jovem sozinha por dias e dias em meio a 48 homens?


Mary Dalva saltou nas Olimpíadas. Voou do alto de 10 metros. O salto ornamental é a modalidade mais radical entre as tradicionais olímpicas. Nenhum esporte lança um corpo no ar de tão alto e sem apoio como este. Largar-se de uma altura equivalente a um edifício não era (e ainda não é) para qualquer pessoa. Muita técnica e uma grande dose de coragem são necessárias. Mary Dalva ficou no 16º lugar. Juliana Veloso foi a única brasileira a repetir seu feito muitas décadas depois, nos Jogos de Atenas 2004. Sim, é muito difícil ser atleta de ponta.

Mary Dalva Proença poderia ter ido mais longe, mas a família retornou para a região norte e por lá a jovem ganhou o sobrenome Cerqueira, pois casou-se, teve filhos, etc. Ela até tentou ficar no Rio de Janeiro e prosseguir com seu sonho, mas uma moça sozinha na capital do país era completamente contra à moral da época. O mundo rosa idealizado para uma mulher não deixava muito espaço para as que desejavam voar.

A saltadora que se arremessou da plataforma australiana para a história da modalidade no país só retornaria às piscinas com a morte do marido, anos depois. Foi campeã brasileira em 1963, mas encerrou a vida de atleta logo em seguida, optando pela casa. Apesar da interrupção da carreira, Mary coleciona mais de 600 medalhas em campeonatos diversos.

Em entrevista ao jornal O Dia em 2016, na piscina do Parque Aquático Maria Lenk, palco dos saltos ornamentais nos Jogos Olímpicos do Rio, foi perguntada sobre qual a medalha mais valiosa para ela. "Minha medalha de participação nos Jogos Olímpicos" respondeu sem vacilar. Pódio nenhum substituiu um sonho verdadeiro. E, apesar da sensação de algo que foi interrompido, ele jamais é esquecido.

Feliz aniversário, Mary Dalva Proença Cerqueira. Muitas saltam hoje porque você voou um dia.