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Eliana Alves Cruz

Novembro negro: Pixinguinha toca o futebol

Estátua do compositor Pixinguinha que foi instalada em 2001 no Rio de Janeiro - Sergio Moraes/Reuters
Estátua do compositor Pixinguinha que foi instalada em 2001 no Rio de Janeiro Imagem: Sergio Moraes/Reuters

17/11/2020 04h00

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Finalmente chegamos à semana de 20 de novembro. Esta data reivindicada por uns, aclamada por outros, contestada por vários e conquistada por muitos. Todas as polêmicas em torno deste dia, que remete à morte de Zumbi dos Palmares há exatos 325 anos, estão alicerçadas em duas palavras: racismo e desinformação. No entanto, fiz para a coluna de número 20, na semana de "20 do onze", uma opção diferente, pois para falar do que nos falta (respeito) e nunca do que nos sobra (talento) tem gente demais. Hoje fiz uma opção pela beleza, pela força e pela poesia que a cultura negra legou e, todavia ainda lega ao Brasil. Pixinguinha toca o futebol!

O crítico e historiador Ary Vasconcelos disse certa vez: "Se você tem 15 volumes para falar de toda a música popular brasileira, fique certo de que é pouco. Mas, se dispõe apenas do espaço de uma palavra, nem tudo está perdido; escreva depressa: Pixinguinha".

Nem preciso fechar o olho para imaginar o jovem de 22 anos e já músico experiente, vibrando com a vitória do Brasil sobre o Uruguai por um a zero, com gol do craque da época, Arthur Friedenreich. Esta foi a primeira grande conquista do futebol brasileiro e já falamos aqui das questões que envolveram estes tempos dos primórdios do jogo. A modalidade ainda muito ligada aos da elite, fazendo tudo para afastar a população negra, mas já começando a se render ao talento de muita gente como o próprio Friedenreich, o "El tigre", apelido dado pelos uruguaios depois da vitória que inspirou Pixinguinha, na competição que é a atual Copa América.

Friedenreich era filho de um neto de alemães com uma mulher negra. Ela, Mathilde, era professora, mas por muito tempo foi dada a ela a profissão de lavadeira, afinal, o que mais poderia ser uma mulher negra na sociedade brasileira do final do século 19 e início do século 20, não é mesmo? Atuando no coração do esporte do coração da elite, Friedenreich de tudo fazia para ocultar os traços que o pudessem ligar à origem negra. O cabelo... ah, o cabelo!

Voltando ao nosso Pixinguinha, imagino o jovem Alfredo da Rocha Vianna Filho ouvindo o jogo pelo rádio, ao lado de seus amigos músicos. Imaginem se ele e seus companheiros de flautas, clarinetes, ofcleid (of oquê?!), violões e saxofones, uma grande parte negros, estariam nas arquibancadas do elegante Fluminense Football Club, onde Friedenreich e outros como ele eram tolerados porque...ora, porque não tinha outro jeito?! Imaginem!

Posso ouvir o coração do nosso então magricela e talentoso personagem gritando de emoção e alívio com o gol de cabeça do Friedenreich, no segundo tempo da prorrogação, e sua flauta à boca compondo em parceria com Benedito Lacerda o chorinho que tem o mesmo título do placar: Um a zero. Um hino sem letra, um cinema sem imagens, uma história cujos capítulos são notas musicais.

Escuto Um a Zero (estou escutando enquanto escrevo) e consigo ver a partida começando, um drible, muitos passes, alguma paralisação durante o jogo... é impressionante.

Dizem que Um a Zero é a primeira música no Brasil dedicada ao futebol. Se não é a primeira, certamente é uma das primeiras composições tendo este esporte como tema. Muitos anos depois o choro ganharia uma letra composta por Nelson Ângelo. "Vai começar o futebol/ pois é/Com muita garra e emoção/São onze de cá, onze de lá...". Quem nunca ouviu?

Pixinguinha ganhou este apelido ainda na infância porque teve bexiga, o nome popular para a varíola, que deixa algumas cicatrizes que ele exibia no rosto. Também há um apelido próximo — "Pizindim" que, segundo ele, foi dado por uma avó africana, que usava uma palavra tirada de seu idioma natal. Alguns irmãos o desmentiram, dizendo que suas avós eram brasileiras e este fato me chama a atenção. Por que Pixinguinha inventaria esta história? Vários pensamentos me ocorrem, mas não serei leviana de expor aqui nenhum deles.

A morte de Pixinguinha é das mais lindas e poéticas entre os artistas brasileiros de todos os tempos. Era carnaval de 1973. Ele recebeu três amigos em casa, papearam, ouviram música e ele, melancólico, chorou. Mais tarde saiu de Inhaúma, na Zona Norte do Rio de Janeiro para ir à igreja de Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, para batizar o filho de outro amigo. Presenteou a criança com uma partitura de "Carinhoso" (outra obra prima eterna!). Na hora de assinar seu nome no registro da igreja, caiu fulminado e faleceu. A famosa Banda de Ipanema passava em frente ao templo. Entre os brincantes, um dos amigos que esteve com ele pela manhã. A música parou, o silêncio se fez. Apenas se ouviu o som da chuva que caía naquele dia de folia, os murmúrios de tristeza e as lágrimas dos foliões, que celebravam uma das duas manifestações mais marcantes da cultura brasileira: O carnaval.

A outra é o futebol.

Salve Pixinguinha! Oremos por ele. Oremos por nós.

Semana que vem, o fim desta singela homenagem e reflexão sobre raça e esporte no Brasil. Vamos falar de dois personagens que são para sempre fábulas no imaginário brasileiro.