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Eliana Alves Cruz

Novembro negro: Bob Marley ama o futebol

Bob Marley jogando futebol - Reprodução
Bob Marley jogando futebol Imagem: Reprodução

10/11/2020 07h20

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"Até que a filosofia/ Que entende uma raça como superior/ E outra inferior / Seja afinal/ E permanentemente/ Desacreditada/ E abandonada/ Em todo lugar haverá guerra/ Eu disse guerra (...)".

Quem pode reunir numa mesma biografia uma vida na maior e mais miserável favela da Jamaica (Trenchtown), o status de pop star, uma militância pacifista e antirracista, o rei etíope Haile Salassie e o clube brasileiro Santos? Apenas o autor dos versos que estão na música "War" (Guerra) e que abrem este texto: Bob Marley.

Semana passada, falei da raiva (justificada, diga-se) do escritor Lima Barreto pelo futebol, nos primórdios de sua popularização. Vamos saltar no tempo. Desembarquemos mais para frente no século 20, quando o esporte se impôs e se rendeu ao talento de pessoas de origens diversas. Vamos para outro lugar e para o sentimento oposto em relação a esta modalidade. Coloque para tocar "Get up stend up", "Trench Town Rock", "Is this love", "Don't Worry" ou outro sucesso deste artista fenomenal, continue por aqui e vamos viajar no ritmo do reggae e das embaixadinhas.

Caso estivesse vivo, Bob teria completado 75 anos em fevereiro deste ano. Amor não traduz o que ele sentia. Paixão, e daquelas avassaladoras, talvez seja a palavra mais adequada. Apenas uma coisa o motivava mais que uma boa partida: a música. A eleição recente de Kamala Harris, filha de um jamaicano, colocou o país nas recentes matérias jornalísticas do planeta, mas não adianta. O nome "Jamaica" nos leva diretamente a Bob Marley e, desde 2008, a Usain Bolt, mas é de Marley que vamos falar aqui.

Vamos falar deste filho de uma adolescente negra jamaicana e de um militar inglês branco, que o abandonou ainda bebê. A mãe o criou em Trenchtow com todas as dificuldades que podemos imaginar e brigando quando ele destruía os poucos calçados nas peladas da favela. Na juventude, dizem, chegou a formar um time que batizou de "House of dread" (Casa do dread).

"Futebol é uma arte completa em si. É todo um universo. Eu amo futebol porque é preciso ser um artista para praticá-lo. Quando nós jogamos futebol, também fazemos música. Eu preciso disso. Liberdade! Futebol é liberdade". Esta declaração só poderia vir de um artista, de um poeta que entende a relação entre corpo, ritmo e criatividade. Bob usava o futebol para relaxar entre as apresentações, para se divertir, se inspirar, para celebrar a alegria e a vida.

Trevor Wyatt, chefe da Island Records, que distribuía os discos do grupo de Marley, os Wailers, no Reino Unido, certa vez em entrevista ao Daily Telegraph, disse que Marley era um craque: "Era muito rápido e criativo. Geralmente jogava no meio-campo, e o chamavam de capitão. Ele era muito bom. Era como enfrentar um jogador da seleção brasileira".

E por falar em seleção brasileira, não existia um jovem dos anos 60/70 no mundo e que gostasse de futebol, que não se encantasse com ela. Bob Marley não era diferente. Era louco pela "seleção canarinho" e, óbvio, por Pelé e pelo Santos. O Peixe tinha tanta popularidade, que foi criado um Santos Football Club na capital jamaicana, Kingston. Bob acompanhou a Copa de 1970, no México, e ficou ainda mais fascinado pelo futebol brasileiro.

Em 1980, com apenas 35 anos, já com câncer e meses antes de sua morte, Marley finalmente visitou o Brasil. Conhecido por sua militância pan-africanista e pela defesa da legalização da maconha, o governo militar brasileiro tratou de não liberar permissão de trabalho para o artista e seu grupo. Desta forma, não realizaram shows no país, mas as imagens mais impactantes desta visita vieram justamente de quando jogou futebol com artistas da MPB. No time A - Bob Marley, Junior Marvin (guitarrista do The Wailers), Paulo César Caju (Jogador da Seleção Brasileira nos anos 70), Toquinho, Chico Buarque e Jacob Miller. O time B tinha Alceu Valença, Chicão (da banda Jorge Ben) e quatro funcionários da gravadora Island Records. O time A ganhou por 3 a 0, com gols de Marley, Chico e Caju.

Em uma conversa com Paulo César Caju, Marley disse: "Sou fã de seu futebol. Rivellino, Jairzinho, Pelé. O Brasil é o meu time. A Jamaica gosta de futebol por causa do Brasil".

Bob Marley foi o primeiro cantor negro não americano com sucesso para além do alcance local e segue sendo uma das figuras mais icônicas da música mundial. Em 2019, 38 anos depois de sua morte, sua imagem rendeu em royalties nada menos que 23 milhões de dólares. Ele era um gênio consciente e uma das manifestações de sua inteligência -- a corporal -- estava intimamente ligada a sua consciência social e religiosa.

Em plena época do florescimento do pan-africanismo (Procure saber, lembram?), aos 21 anos ele se tornou adepto do movimento político-religioso Rastafári, que proclamou Haile Selassie (imperador da Etiópia falecido em 1975) como a representação divina na Terra. Baseado na filosofia rastafári, ele defendia a irmandade para toda humanidade, a liberdade, paz, igualdade social e de direitos, o amor universal. Bob fez o movimento rastafári conhecido do mundo inteiro.

Seu melanoma cresceu em um dos dedos grandes do pé. Dizem que como consequência de um machucado não curado adequadamente, durante uma partida de futebol, em Londres, em 1977. Os médicos o aconselharam a amputar o dedo, mas ele recusou-se. A filosofia Rasta preconiza o corpo como um templo que não pode ser modificado. A amputação também afetaria drasticamente seus movimentos, sua dança e o afastaria para sempre do futebol. Talvez ele soubesse que sua criação e sua mensagem sobreviveriam muito além dele. Talvez fosse o exercício mais radical do não apego à matéria.

Marley teria dito a amigos pouco antes de falecer que gostaria de criar uma escola de futebol para crianças carentes em Kingston. Esporte e educação... Ele bem sabia, mas não deu tempo. Para Bob Marley, promover a inclusão social pelo esporte ficou apenas no sonho de uma criança apaixonada pela bola.

E já que falamos de música, semana que vem vamos cantar bem mais. Até lá!