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Eliana Alves Cruz

Novembro negro: Lima Barreto odeia o futebol

O escritor Lima Barreto - Reprodução
O escritor Lima Barreto Imagem: Reprodução

03/11/2020 04h00

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Chegamos ao mês de novembro de 2020, um ano em que uma pandemia tratou de terminar de escancarar a medida das igualdades e desigualdades humanas. Muito embora o "evento George Floyd" tenha feito o mundo antecipar o novembro, neste mês em que o Brasil há 20 anos acostumou-se a dedicar à consciência negra, trarei a cada semana um personagem (ou mais de um) para falar de algo que deveria ser tema de reflexões sem data marcada. Hoje o rei é ele: Lima Barreto. Este escritor que também viveu uma época de pandemia (Cólera Morbus) e detestava com todas as suas forças uma paixão nacional: o futebol.

O Lima, autor sem papas na língua e tremendamente sarcástico, ácido com os poderosos e que viveu apenas 41 anos, achava o futebol uma das coisas mais perversas do Brasil da época, mas... Por quê?! É simples e ao mesmo tempo complexo responder.

É fácil entender que um escritor e jornalista negro, nascido ainda na vigência da escravidão (1881), neto de escravizados, ciente da sua capacidade e genialidade, mas bastante esnobado pela elite da época, tivesse muito, como se diz atualmente, "ranço" de um esporte trazido, praticado e incensado pelos mauricinhos ricos do seu tempo. E ele não teve nenhum pudor em comprar "tretas" enormes por conta disso. Inteligente acima da média, Barreto enxergou longe.

Em 1920 o Brasil fez um amistoso na Argentina. Um crítico uruguaio, Antônio Zino, escreveu um artigo ilustrado pelo argentino Diógenes Taborda, que caiu feito bomba no ego nacional.

"Já estão os macaquitos em terra argentina. Esta tarde teremos que acender a luz às 4 da tarde para vê-los. (...) Se há uma gente que nos parece altamente cômica é a brasileira. São elementos de cor que se vestem como nós e pretendem se misturar à raça americana, gloriosa por seu passado e grande por suas tradições".

Lima respondeu quase de imediato com seu habitual deboche : "(...) A Bélgica tem leões (como símbolo); entretanto, o leão é um animal sem préstimo e carniceiro. O macaco - é verdade - não tem préstimo; mas é frugívero, intelligente e parente próximo do homem".

Reprodução do Jornal A Crítica de 1919 - Jornal A Crítica 1919 - Jornal A Crítica 1919
Reprodução do Jornal A Crítica de 1919
Imagem: Jornal A Crítica 1919

Acontece que o racismo científico do recém terminado século 19 estava aí mesmo para fazer com que os dirigentes tentassem ao máximo "branquear" o esporte como, aliás, tudo o mais na cultura brasileira.

O ano virou e agora era para valer. Era preciso montar uma seleção para o Campeonato Sul-Americano. Os dirigentes decidiram formar uma equipe apenas com jogadores brancos. Arthur Friedenreich, por exemplo, craque indiscutível, mas de de ascendência negra ficou de fora. Lima não perdoou. Foi duríssimo com o presidente Epitácio Pessoa, a quem atribuem a decisão final. Ele escreveu na crônica "Bemdito Futeból", na revista Careta:

"O Sacro Collegio do Futeból reuniu-se em sessão secreta, para decidir se podiam ser levados à Buenos-Ayres, campeões que tivessem, nas veias, algum bocado de sangue, negro-homens de cor. [?] O conchavo não chegou a um accordo e consultou o Papa, no caso, o eminente Sr. Presidente da República. S. Ex. [?] não teve dúvida em solucionar a grave questão. Foi sua resolução de que gente tão ordinária e compromettedora não devia figurar nas exportáveis turmas de jogadores. [?] O que me admira, é que os impostos, de cujo producto se tiram as gordas subvenções com que são aquinhoadas as sociedades futebolescas, não tragam também a tisna, o estigma de origem, pois uma grande parte delles é paga pela gente de cor."

Esta resposta resume sua raiva. O racismo no esporte era explícito, mas o dinheiro que o sustentava era público, não tinha cor e mais, faltava em serviços essenciais. A crítica irada de Lima Barreto estava constantemente apontada para denunciar um país erguido sobre o braço negro, mas que o excluía de todos os círculos que pudessem moldar o imaginário nacional dentro ou fora de suas fronteiras.

O Barreto errou feio, errou rude ao pensar que o esporte não ganharia o povo. Mais de um século passou, o futebol popularizou-se, profissionalizou-se e pôs em campo pessoas de todas as cores e origens. No entanto, quantos técnicos, dirigentes ou goleiros negros você conhece em atuação? E na história toda, desde quando Barreto escrevia foot-ball ou fut ból?

Ah! e vamos combinar que torcidas "hermanas" ainda seguem nos chamando de macaquitos quando querem nos irritar.

A crônica "O meu conselho", publicada no jornal ABC, em 15 de setembro de 1921, é toda um deboche só em relação a muitos temas, mas sobre futebol ele fala de dinheiro, de alienação, de eugenia e outras tantas coisas que ainda hoje nos inquietam: "É o fardo do homem branco: surrar os negros, afim de trabalharem para elle. O futeból não é assim: não surra, mas humilha; não explora, mas injuria e come as dízimas que os negros pagam".

Suas críticas sociais nos chegam aqui, neste distante século 21, tão absurdamente atuais, que ele está morto há 98 anos, mas o verbo é assim mesmo, no presente: Lima Barreto ODEIA o futebol.

Semana que vem teremos outro ídolo que não está mais aqui, mas, ao contrário, AMA o futebol. Até lá!