Topo

Eliana Alves Cruz

Lewis Hamilton e a nova régua da diáspora africana

Lewis Hamilton "voa" após ganhar o GP de Portugal e se tornar, com 92 vitórias, o maior vencedor da história da Fórmula 1 - Jorge Guerrero - Pool/Getty Images
Lewis Hamilton "voa' após ganhar o GP de Portugal e se tornar, com 92 vitórias, o maior vencedor da história da Fórmula 1 Imagem: Jorge Guerrero - Pool/Getty Images

27/10/2020 07h33

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Mais uma vez ele é o tema desta coluna. Não adianta. Impossível não comentar mais a fundo o que ele representa neste fim de segunda década do século 21. Um tempo tomado pelos extremos, pelo posicionamento sem máscaras (apesar da necessidade em usá-las!), pelo desnudar de quem verdadeiramente somos. Um choque civilizatório pelas verdades por tanto tempo ocultadas e negligenciadas.

Lewis Hamilton é o novo homem a ser batido na Fórmula 1. Voltas e mais voltas em torno de pistas, poles positions, 92 vitórias, muitas camisetas e uma nova medida para este esporte dominado por brancos endinheirados. Hamilton escreve, assim, mais um capítulo que muda o parâmetro dos que nasceram na diáspora africana e sabem disso.

Para o leitor e a leitora com antenas menos ligadas nas questões raciais, explico. Não deveria, pois é um tanto absurdo que adultos do século 21 - pretos, pretas, brancos ou brancas - não saibam o que é uma diáspora, a dispersão de um povo. No caso da diáspora negra, ela foi feita pelo sequestro de homens e mulheres ao longo séculos para trabalhos forçados nas Américas e na Europa. Desta forma, ao escancarar no peito #endsars, Hamilton foi mais um a atar um laço no cordão que por anos sem conta pareceu para sempre rompido.

Nestes precários anos 20 do século da tecnologia, da super exposição, das carreiras elevadas, construídas e por vezes destruídas virtualmente, onde a fama pode evaporar como um tanque de gasolina aberto ou explodir como o combustível exposto ao fogo, não é pouca coisa sair das fronteiras do próprio umbigo, jogando fora o espelho de Narciso para se conectar com as dores e clamores do planeta. A questão ambiental, Black Lives Matter e agora o "End Sars" não são "bandeiras", são questões de vida ou morte.

A ferida que a camiseta de Hamilton escancara é enorme e funda. A Nigéria é um país que comemorou seus poucos 60 anos de independência no último dia 2 de outubro. Dez a menos que a Fórmula 1, que tem 70 anos de história. A nação que foi colônia inglesa também sofre com uma mazela muito comum em países com esta trajetória onde a repressão pela força bruta foi, por séculos, o meio de controle: o abuso policial.

A SARS -- uma sigla para, em tradução livre, Special Anti-Robbery Squad ou Esquadrão Especial Anti-roubo -- foi criada em 1984 e tem sido alvo de denúncias desde os anos 90. A Anistia Internacional registrou de janeiro de 2017 a maio deste ano, 82 casos de tortura e execução.
Os alvos da violência policial são homens jovens entre 18 e 35 anos, assim como o próprio Hamilton.

A Nigéria, aliás, é um país de enorme massa jovem. Segundo dados da ONU, 60% da população tem menos de 24 anos. Esta juventude, primeiro tomou as ruas, depois as redes e o mundo. Como resposta recebeu mais repressão, mais tortura, mais dor... A Anistia Internacional também tem um relatório de 2014, chamado "Bem-vindos ao fogo do inferno: Tortura e outros maus tratos na Nigéria" que, para os que quiserem acessar, já dou o alerta de gatilho para a extrema violência dos relatos.

Estou explicando, mas não deveria. A Nigéria tem mais a ver com o Brasil que a maioria dos países europeus. Tem uma história riquíssima antes da colônia, antes dos tumbeiros, antes dos colonizadores, antes da diáspora... Ela está no sangue das veias de uma parcela gigante de pessoas negras nascidas na Europa e nas Américas. Procure saber. Entre os 880 pilotos que já correram na F1 ao longo de sete décadas, em 262 Grande Prêmios, Lewis Carl Davidson Hamilton procurou entender, engajou-se e está ajudando a subir o sarrafo da régua da consciência na diáspora africana.