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Eliana Alves Cruz

Gripe Espanhola x Covid-19: O "museu de grandes novidades" do futebol

Friedenreich ao lado de seus companheiros de Paulistano, em 1918 - Centro Pró-Memória do Paulistano
Friedenreich ao lado de seus companheiros de Paulistano, em 1918 Imagem: Centro Pró-Memória do Paulistano

29/09/2020 04h00

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O compositor Cazuza, em sua genialidade de poeta, cunhou frases que parecem resumir o Brasil. Na letra de "O tempo não para" ele diz: "(...) Eu vejo o futuro repetir o passado/ Eu vejo um museu de grandes novidades (...)". O caso dos infectados por covid e a novela do "vai ter jogo/ não vai ter jogo" da última semana fez o país assistir atônito a mais um capítulo de velhíssimas novidades. Pegue a pipoca, sente em frente à telona do cinema da história e acompanhe.

Pandemias? Tivemos

O ano era 1918 e uma gripe que teve os primeiros casos oficialmente registrados em março, em Camp Funston, uma base militar no Kansas, fez em torno de 50 milhões de vítimas fatais. A Primeira Guerra Mundial durou quatro anos e não matou nem perto disso. Foram mais ou menos nove milhões.

Para manter o ânimo elevado das tropas, os censores conseguiram minimizar e camuflar os efeitos da pandemia por Influenzavírus H1N1. A Espanha, neutra no conflito, não censurava nada e os artigos alarmantes por lá com os efeitos da doença fez com que o mal passasse à história com o nome de 'Gripe Espanhola'.

Vejam que governo manipulando notícias sobre moléstias terríveis não é nenhuma novidade. Antes, já tinham feito o mesmo com o Cólera Morbus e por aí vai. Novidade velha número um: Manipulação de informação. Novidade velha número dois: Fake News.

No Brasil, estima-se que cerca de 300 mil pessoas perderam a vida. O autor Bertolli Filho (2003) destaca que "durante algum tempo, bares, teatros, cinemas, casas noturnas e jogos de futebol continuaram sua rotina normal, ignorando os comunicados do Serviço Sanitário, mais por uma questão de 'negação', pois para muitos não passava de um resfriado coletivo sem maiores consequências". Novidade velha úmero três: Gripezinha.

Entre os falecidos, o presidente eleito Rodrigues Alves e nada menos que 35 jogadores. O craque do Fluminense na época, o meia-esquerdo inglês Archibald French, foi uma das vítimas. Aqui o filme "esquenta"! Escuta essa.

O Brasil estava prontinho para sediar a sua primeira grande competição internacional: o Campeonato Sul-Americano. O Fluminense sediaria os jogos por conta do seu presidente, Arnaldo Guinle, também presidente da antiga CBD (Confederação Brasileira de Desportos) e que arrumara gordas quantias com o poder público para incrementar o clube e "fazer um bonito para o mundo". Novidade velha número quatro: promiscuidade entre o esporte e o poder público.

Um vírus! Algo tão pequeno, insidioso e mortal poderia parar a nascente máquina do futebol brasileiro? Não. Apenas depois de quinze jogos realizados, o Campeonato Brasileiro parou, quando todos os jogadores do Fluminense estavam infectados. O Sul-Americano foi suspenso enquanto durou a fase mais pesada da pandemia. Os corpos se amontoavam nas capitais pelo mundo, mas as obras no clube seguiram. Novidade velha número cinco: dinheiro vale mais que vida.

E como grana é grana, os jogadores paulistas Friedenriech, do Paulistano; Amílcar Barbuy e Manuel Nunes, do Corinthians, ganharam muito dinheiro para treinar com a seleção no Rio de Janeiro, o dobro do maior salário de muitas categorias de trabalhadores. Uma nota alta para a época. A tragédia da gripe adiou a competição, ninguém se deslocou para treinar no Rio, mas os três não devolveram o dinheiro alegando que o usaram para se manter no período sem trabalho, causando uma grande confusão, que fez a Associação Paulista romper com a CBD (presidida pelo Guinle do Flu, lembram?), que convocou atletas mineiros desconhecidos para substituir atletas considerados entre os melhores da época. Começou uma guerra entre São Paulo, Rio e Minas. Novidade velha número cinco: só uma coisa vale mais que dinheiro no futebol, o poder.

Chegamos a 2020 e tudo se repete com novos contextos, novos nomes, muito mais dinheiro... e com o cheiro de mofo da velhas práticas do início do século passado. No entanto, assim como Cazuza, seguimos com alguma esperança de bom senso:

"(...) Saiba que ainda estão rolando os dados/ Porque o tempo, o tempo não para".