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Eliana Alves Cruz

Do futebol à magistratura, o caminho de uma família negra brasileira

Africanos que deixaram condição de escravizados posam em estúdio, no final do século 19, em Porto Alegre - Acervo do Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo
Africanos que deixaram condição de escravizados posam em estúdio, no final do século 19, em Porto Alegre Imagem: Acervo do Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo

18/08/2020 08h09

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Conversamos por telefone, mas consigo ver o sorriso da Dra. Karen Luise Souza Pinheiro ao falar do avô, Hélio Vilanova, jogador de futebol na Porto Alegre do início do século passado. Ele jogava na Liga de Futebol Porto-Alegrense, a famosa "Liga dos Canelas Pretas".

O nome pejorativo não aparece em nenhuma documentação ou notícia da época, mas foi com este "apelido" que o grupo formado por times compostos em sua maioria por negros, pobres e periféricos passou à história. Então segura que lá vem outra história que dava um filme.

Quando corria pelos gramados gaúchos lá pelos anos 20 ou 30, Hélio não poderia imaginar que a neta, Karen, que nem sonhava em nascer, no século 21 se tornaria uma respeitada juíza da 1ª Vara do Júri de Porto Alegre/RS -- provavelmente uma das únicas, senão a única negra em uma Vara do Júri em todo o país -- Diretora do Departamento de Direitos Humanos da Associação de Juízes do seu estado, Membra da Associação dos Juízes para a Democracia, entre outras funções.

Hélio Vilanova era como muitos rapazes negros da mesma geração e da mesma origem. Originário da Cidade Baixa, na Ilhota, assim como o cantor Lupicínio Rodrigues o lendário jogador Tesourinha, do Internacional. Muito provavelmente ele era do time da Várzea, o 8 de setembro.
A segregação dos clubes de elite fundados por imigrantes alemães e italianos era um fato e motivou a criação da Liga com nove clubes, todos representantes de redutos da cidade como a Cidade Baixa, a Ilhota e a Colônia Africana que eram proibidos de entrar no Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense, no Sport Club Internacional e no Esporte Clube Cruzeiro, times frequentados pela classe média alta da cidade.

A origem elitista do futebol no Brasil teve como reação iniciativas como a Liga, mas o amadorismo do esporte em seu princípio foi o que a manteve na ativa. A partir do momento que a profissionalização começou a imperar, os olhos se voltaram para os "Canelas Pretas", com ofertas financeiras que atraíram seus jogadores e fizeram com que a Liga perdesse força até ser extinta, em meados dos anos 30.

O esporte -- como falei aqui em outras ocasiões -- é uma importante ferramenta de inclusão social. Fazer parte de um time, de uma Liga e ter esta experiência de vida auxilia muitos jovens em sua autoestima. Hélio Vilanova saiu do 8 de setembro para os bancos escolares, de lá para a universidade de contabilidade, desta para a aprovação num concurso no Banco do Brasil e neste chegou a um cargo de chefia numa época em que o serviço público era o sonho de ascensão social mais cobiçado.

Como diz a ativista e diretora executiva da Anistia Internacional no Brasil, Jurema Werneck, nossos passos vêm de longe. Doutora Karen é fruto de alguém que teve contanto com a segregação racial muito de perto e fez parte de uma ação para confrontá-la. Isto, no Brasil ainda hoje carente de conscientização, não é pouca coisa.

-- Quando meu avô se aposentou do Banco do Brasil, funcionários fizeram uma festa em comemoração, pois não suportavam ter um chefe negro -- contou Karen.

Hoje o futebol é um dos esportes em que os atletas negros mais se sobressaem, mas não foi sempre assim. Para que hoje isto fosse algo natural, pessoas ocuparam o espaço, mesmo enfrentando as hostilidades. Dando o salto educacional, o senhor Hélio propiciou que duas gerações depois sua descendente possa estar desbravando outro terreno onde a presença da população negra brasileira é rara e não naturalizada: o judiciário.

Segundo o autor Evanoir Carvalho dos Santo, o professor e poeta gaúcho Oliveira Silveira, idealizador do 20 de novembro como dia da consciência negra, batizou com o nome Grupo Canela Preta o conjunto de times que organiza um torneio todos os anos, na Semana da Consciência Negra.

Que possam inspirar um futuro de oportunidades iguais no esporte e em toda parte.