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Diogo Silva

Engajamento de atletas na luta antirracista marca esporte em 2020

LeBron James e demais jogadores do Los Angeles Lakers em protesto durante o hino nacional dos EUA e reação às manifestações Black Lives Matter [Especial NBA Finals] - David Dow/NBAE via Getty Images
LeBron James e demais jogadores do Los Angeles Lakers em protesto durante o hino nacional dos EUA e reação às manifestações Black Lives Matter [Especial NBA Finals] Imagem: David Dow/NBAE via Getty Images

30/12/2020 12h25

Em uma retrospectiva do que foi o ano de 2020 esportivamente, posso dizer que a luta antirracista foi o maior espetáculo que os atletas puderam nos proporcionar.

De Naomi Osaka, do tênis, a Maya Moore, da WNBA, o esporte dessa vez não se calou e cravou os dentes para marcar o ano do combate ao racismo.

A regra 50 da Carta Olímpica, que proíbe manifestações políticas e religiosas durante os Jogos Olímpicos, e pontos do artigo 67, da Conmebol, que também veta protestos de jogadores, passaram a ser questionados após as ondas de protestos antirracistas nos Estados Unidos que tiveram intensa participação de atletas.

Combater o racismo não é apenas um ato político, mas salva vidas. Sabendo que o racismo mata, as entidades esportivas e a sociedade não devem punir quem luta para defender a humanidade.

Para alcançar tal ponto de entendimento sobre a história da luta pela vida, vou buscar um trecho do discurso I have dream (eu tenho um sonho), do pastor Martin Luther King. O texto fala sobre a necessidade de união e coexistência harmoniosa entre negros e brancos no futuro.

O histórico discurso do Dr. King, nos degraus do Lincoln Memorial em Washington, foi feito em 28 de agosto de 1963, após uma marcha E quem diria que 57 anos depois, em meio a uma pandemia por conta da covid-19, atletas (negros, em sua maioria) iriam protagonizar mais que uma marcha, mas sim, paralisações que ultrapassaram as fronteiras dos EUA e ganharam o mundo após o assassinato de George Floyd.

Se vivemos no futuro, já que o futuro de ontem é hoje, atletas como Lewis Hamilton e Lebron James fizeram e fazem a parte deles.

O astro do basquete é símbolo da luta pelos direitos humanos na NBA. O melhor jogador de todos os tempos, MVP (jogador mais valioso) do ano e campeão pelo Lakers, se uniu à maior paralisação protagonizada pelos atletas do Milwaukee Bucks que se negaram a jogar contra o Orlando Magic depois de Jacob Blake, um homem negro, ser baleado por um policial branco em agosto deste ano.

O bocoite seguiu nas partidas entre Rocket x Thunder e Lakers x Trail Blazer. Os atletas dos times se negaram a entrar em quadra e, quando entraram, ajoelharam com braços dados, protagonizando umas das imagens mais impactantes do ano.

Com o ato, LeBron James e demais jogadores estavam honrando os nomes de todos os atletas que se sacrificaram no passado e tiveram sua carreira interrompida pelo racismo, como, por exemplo, Colin Kaepernick, do futebol americano.

Colin Kaepernick (dir) e Eli Harold ajoelhados durante execução do hino dos EUA - Michael Zagaris/San Francisco 49ers/Getty Images - Michael Zagaris/San Francisco 49ers/Getty Images
Colin Kaepernick (dir) e Eli Harold ajoelhados durante execução do hino dos EUA
Imagem: Michael Zagaris/San Francisco 49ers/Getty Images

O ex- quarterback do San Francisco 49ers está há quatro anos sem contrato de trabalho na NFL. Um dos principais ativistas na luta por igualdade racial dos EUA, ele costumava se ajoelhar durante o hino nacional para protestar contra a violência sofrida pelos negros em seu país e hoje.

A lançadora de martelo Gwendolyn Berry, que venceu os jogos Panamericanos de 2019, em Lima, no Peru, foi punida por dois anos de suspenção após levantar os punhos cerrados no pódio. O ato lhe custou também a perda de patrocínio e o interrompimento da carreira para a classificação dos Jogos Olímpicos de Tóquio 2021.

Ela repetiu o gesto dos velocistas norte-americanos dos 200 metros rasos John Carlos e Tommie Smith, que também levantaram os punhos, calçados em luvas negras, no pódio da Olimpíada de 1968, na Cidade do México. Por causa do gesto, a dupla foi expulsa da equipe norte-americana de atletismo e nunca mais pôde competir.

Os exemplos do passado nos mostram como a luta é antiga e, no futuro, que é hoje, vamos tendo novos protagonistas.

Lewis Hamilton durante protesto antirracista - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Lewis Hamilton, durante protesto antirracista
Imagem: Reprodução/Instagram

Na Fórmula 1, Lewis Hamilton, único negro na competição de automobilismo mais famosa do mundo, surge como novo símbolo de resiliência e resistência. O piloto é exemplo para jovens negros e periféricos, que muitas vezes não têm dinheiro nem para andar de kart em parque de diversão e que guiar o carrinho de rolimã, ladeira abaixo, é o mais próximo que podem chegar do sonho de ser piloto.

Jamais poderíamos imaginar que veríamos um afrodescendente no topo da cadeia do esporte mais elitista e caro que temos no circuito mundial esportivo.

Hamilton foi a imagem mais marcante desse ano tão triste. O britânico não se limitou em apenas falar sobre os jovens assassinados pela polícia a cada vitória no ano em que conquistou seu sétimo título mundial. Ele foi às ruas e se juntou a outros manifestantes que em um único coro gritavam que vidas negras importam.

É importante ressaltar que vidas negras importam não apenas para o trabalho pesado com baixos salários e turnos dobrados. Os negros não devem entrar para a história como exemplos de invisibilidade e impotência.

Os corpos, antes invisíveis, não querem mais estar ocultos. Mas para mudar isso é preciso coragem. Para essa luta ser unida, pelas multicores do arco-íris que Nelson Mandela, ex-presidente da África do Sul, sempre enfatizou, é necessária coragem.

E foi essa coragem que esses atletas tiveram, colocando suas carreiras em risco e mantendo o peito estufado e a voz alta, para levantar a pauta antirracista. Eles ajudaram a transformar a onda de protestos, que muitos imaginavam que seria apenas um momento, um símbolo de raiva momentâneo, na maior enchente da luta pelos direitos humanos já vista no esporte.

Mudanças no futebol

E essa luta foi e é tão forte, que motivou mudanças no maior pedestal do esporte global, o futebol. Carapuça mais difícil de transgredir, o futebol mundial é tomado desde o início pelos símbolos de ódio: racismo, homofobia, xenofobia e intolerância religiosa. Inúmeros interesses comerciais das TV e as blindagens de empresários, gestores, técnicos e presidentes tornam esse lugar o mais difícil de ser acessado.

Já vimos de tudo nos campos. Quando a bola rola, tudo parece ser permitido. Moram dentro das arenas os xingamentos de macaco sofridos pelo goleiro aranha, as ofensas homofóbicas contra o ex-jogador do São Paulo Richarlyson e a banana atirada para Daniel Alves quando jogava no Barcelona.

Neymar faz protesto antirracista no recomeço do jogo entre PSG e Istanbul  - FRANCK FIFE / AFP - FRANCK FIFE / AFP
Neymar faz protesto antirracista no recomeço do jogo entre PSG e Istanbul
Imagem: FRANCK FIFE / AFP

Os exemplos são inúmeros. O mais recente envolveu Mano Menezes, ex-técnico do Bahia, que chamou de "malandragem" a revolta do jogador do Flamengo Gerson, que questionava o árbitro por conta do racismo que lhe atravessou.

Diante desses exemplos, é possível refletir em quantas vezes fomos descartáveis até nos tornarmos paredes brancas para sermos pichadas de preto.

Mas mesmo no futebol já vemos pequenas mudanças. Richarlison, atacante do Everton (ING) passou a se manifestar pelas redes sociais. Rony atacante do Palmeiras ajoelho em campo, levantando o braço com punho cerrado. O coro foi engrossado por Paulinho, do Bayer Leverkusen, Gregore, do Bahia, Jean Pyerre, do Grêmio, e Lucas Santos, do Vasco.

Era difícil de acreditar no que estávamos vendo. Mas foi pelo futebol que meus olhos brilharam em 2020. Foi por causa do futebol que, mesmo sem querer, meus olhos verteram água que lubrificam a retina.

A paralisação do jogo entre Istambul e PSG pela Champions League foi o símbolo mais importante da luta antirracista no futebol em 2020. Os dois times se retiram do campo após Pierre Webo acusar o quarto arbitro Sebastian Coltescu de racismo. Neymar e Mbapé, do PSG, e Webo, do Istambul, lideraram a saída dos jogadores de campo, ato que marcou para sempre a história do futebol.

Para 2021 o recado já foi dado: com racismo não há futebol, sem democracia não a esporte.