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"The Last Dance": Obrigado pela dança, Jordan

Ao lado do inseparável copo de tequila, Michael Jordan relembra sua carreira em gravação do documentário "The Last Dance" - Imagem: Reprodução
Ao lado do inseparável copo de tequila, Michael Jordan relembra sua carreira em gravação do documentário "The Last Dance" Imagem: Imagem: Reprodução

Gustavo Lima, ex-jogador; supervisor de basquete do Corinthians

Especial para o UOL

21/05/2020 04h00

O basquete tem todos os ingredientes para um bom roteiro de cinema. Tem emoção, disputa, imprevisibilidade, tem heróis, vilões e final feliz.

O documentário "The Last Dance", disponível na Netflix, narra a dinastia do Chicago Bulls na NBA nos anos 90, com os seis títulos conquistados e a evolução de Michael Jordan para se tornar, na opinião de muitos, o maior jogador de basquete de todos os tempos. Os registros da época em película são preciosos e totalmente nostálgicos. Chama a atenção a quantidade de cenas de bastidores, de vestiários e treinos, a maior parte delas inéditas há mais de 20 anos em qualquer mídia.

O ponto de partida da série foca o gerente geral dos Bulls à época, Jerry Krause, que anuncia após a conquista do quinto anel (objeto dado a jogadores e técnicos a cada título) da franquia em 97, que a próxima seria a ultima temporada do técnico Phil Jackson à frente da equipe. Phil então propõe aos seus liderados a "The Last Dance", a última dança, o último baile, aqui assassinado pela tradução para o português com o "Arremesso Final".

Para contar a história, o diretor Jason Hehir abusa dos flashbacks [recursos que permite regressar no tempo da história para contar alguma nova cena] por toda a trajetória dos campeões, sempre acompanhados de entrevistas atuais com os personagens da equipe, seus adversários, jornalistas e familiares. É o primeiro filme relevante que Michael Jordan participa após a animação lendária Space Jam, época em que o astro se tornaria um dos rostos mais conhecidos em todo o planeta. Além do longa-metragem da Warner Bross, Jordan estrelou comerciais de Mc Donalds, Gatorade e, contrariando as expectativas da época, se tornou garoto propaga da Nike, sendo o primeiro jogador a ter seu próprio tênis personalizado, o Air Jordan.

A intimidade de MJ, até então praticamente intocável, é destrinchada durante os 10 capítulos. Sentado no sofá da uma luxuosa casa, na companhia de um copo de scocth (nota da redação: Jordan bebia tequila), a câmera capta cenas maravilhosas de astro assistindo no iPad a depoimentos de amigos e rivais, e reagindo a cada um deles, hora com risadas, hora com desaforos e provocações. Suas muitas virtudes são escancaradas. Sua vontade incomum de vencer e de se superar nos treinamentos táticos, técnicos e físicos talvez nunca tenha sido igualada. Sua capacidade e coragem para decidir partidas também não. Um jogo plástico e ao mesmo tempo eficiente. Completo se dedicava de ambos lados da quadra. Era uma baita defensor. Em posse da laranja, parecia flutuar e sempre jogava acima do nível do aro fazendo jus ao seu apelido Air Jordan. Usava como qualquer protesto ou adversidade como combustível para se motivar a vencer os rivais. Uma nota de jornal, um olhar, uma simples palavra... Qualquer coisa era capaz de transformar o desafio em algo pessoal. Era a faísca que o craque precisava para explodir.

A veia competidora 100% do tempo também lhe trouxe alguns inconvenientes. Queria arrancar o máximo dos companheiros e, muitas vezes sendo muito duro, por vezes extrapolava os limites da grosseria. O que resultou em muitas farpas com colegas e até troca de socos como relata o parceiro de time Steve Kerr, hoje técnico do Golden State Warriors. A compulsão por vencer também causou problemas na esfera pessoal e seu problema com jogatina e apostas também é diagnosticado em alguns dos episódios da série. O rei das quadras mesmo vinte anos após tem dificuldades para falar sobre o tema e segundo ele não era viciado, mesmo tendo sido visto em um cassino em uma madrugada anterior à uma final de playoffs.

Podia não parecer, mas o herói era humano. Sofreu um baque com a assassinato do pai, o que levou ao abandono da carreira do basquete para se aventurar em uma liga profissional de beisebol por dois anos. Houve também muitos que tentaram se aproveitar da fama de ídolo, espalhando notícias falsas e levianas sobre sua vida pessoal. Sem provas e também sem escrúpulos, alguns jornalistas chegaram a questionar se o assassinato do pai poderia ter a ver com uma suposta dívida em apostas.

Jordan se aborreceu por vezes com a imprensa mas em sua grande maioria foi educado e simpático com os repórteres. Contudo, com a radiografia detalhada de sua vida pessoal à mostra, cometeu deslizes e mesmo tendo uma representatividade global demonstrou por vezes uma certa alienação em relação a política e questões sociais. Em tempos anteriores as redes sociais o acesso ao extra quadra era limitado, todavia o documentário tem o mérito de não somente endeusar a fera, mas também joga o holofote nessas e outras polêmicas da carreira de Mike.

Quando a bola subia ele praticamente não tinha falhas e injetava a sua personalidade de guerreiro nos companheiros. O DNA desse time que coleciona recordes e admiradores é exposto com uma riqueza de detalhes que nos emociona a cada capítulo. Vem a tona o tema de novela entre Scott Pippen e o cartola Jerry Crause, no qual o ala teria assinado um longo porém baixo contrato com a franquia e desejava um aumento. Porém, apesar de ser o braço direito de Michael, considerado por críticos e oponentes um dos jogadores com mais impacto na liga e de inclusive ter sido convocado para o Dream Team americano, não teve seu contrato renegociado. Pippen o sexto atleta mais bem pago do time e 122o salário da liga.

Mergulhamos de cabeça, no showman Dennis Rodman seus cabelos coloridos, tatuagens e pierciengs. Personagem icônico, emblemático, talvez o melhor defensor da história do basquete. O cara ideal para fazer o trabalho sujo dentro de quadra. Fora dela, a marca registrada era o espírito livre, narrado em passagens sensacionais, desde o namoro com Madonna, aparecer vestido de noiva no lançamento do seu livro "Bad as i wanna be", a folga de 48 horas em Las Vegas concedida pelo técnico em plena temporada (que se estenderia há mais 72 sem autorização), até o drama de pensar em por fim a sua própria vida com uma arma de fogo no estacionamento do ginásio.

A magistral condução de Phil Jackson e capacidade de administrar os egos e manter o time unido é ponto chave para a construção desse esquadrão vencedor. Muitos treinadores são vaidosos e querem ser donos do time, não entendem que eles são parte de todo processo. Phil é cabeça aberta e sabe bem como lidar com o trabalho em grupo. Dava liberdade e estimulava a criatividade. Pregava o jogo coletivo através de seu sistema de triângulo ofensivo, onde pretendia tirar um pouco a bola das mãos do número 23, mas nunca seu protagonismo. O incentivo ao jogo de passes formou um time coeso e confiante mas também consciente sobre quem daria o último arremesso. Com esse conjunto fecharam da melhor maneira possível o ano 1998, abocanhando seu sexto título da NBA.

Nunca pudemos ter acesso a essa quantidade informações sobre esse período. Minha sensação é que Mike realmente está à frente do seu tempo. Há uma grande discussão clássica sobre quem foi o melhor da história do basquete. Kobe Bryant e Lebron James merecem comparações para se ater aos últimos 20 anos. Alguns dizem que é questão de preferência, outros que o que vale é a quantidade de anéis ou há quem diga que tem que pesar quem teve mais ajuda com os coadjuvantes da equipe. Eu fico com MJ, porém mais do que isso. Em uma das entrevistas finais de "The Last Dance"', Barack Obama diz que Michael Jordan abriu as portas do basquete e quiça dos Estados Unidos como país para todo o mundo. Conclui que esse é o seu maior legado.

Kobe imitou seus movimentos com perfeição, Lebron usa a camisa 23, eu estou escrevendo esse texto e milhares de crianças sonham em ser jogadores de basquete. Devemos isso a ele. E, neste quesito, ele será sempre o maior.

Obrigado pela dança, Michael Jordan. Parece roteiro de ficção, mas é a mais pura realidade.

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