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Zaidan: Os critérios de Guardiola são muito bons, mas não servem para todos

Miguel MEDINA / AFP
Imagem: Miguel MEDINA / AFP

13/01/2020 11h00

Faz poucos dias, Guardiola disse que nunca treinará o United ou o Real Madrid. Desnecessário explicar os motivos, mas ele deixou claro que essa impossibilidade é por respeito ao Manchester City e ao Barcelona. Um repórter quis saber se o treinador manteria essa posição mesmo que não houvesse convite de outros clubes. Guardiola respondeu que, nesse caso, ficaria sem trabalhar. Não citou clube alemão, talvez por não enxergar um rival claro, inequívoco, do Bayern.

Em nenhum momento, ele insinuou que sua decisão deve ser tomada como princípio absoluto, inegociável, referência para todos os outros técnicos; no entanto, é nesse sentido que muita gente exalta a declaração do catalão, ou seja, quer que seu exemplo vire regra, norma a ser estendida a todos os treinadores. Mas Guardiola pertence ao ínfimo grupo de profissionais que só aceitam trabalhar onde querem, onde se sentem bem; se não for assim, podem descansar por meses, talvez anos, pois já ganharam o suficiente para uma vida sossegada e não precisam aguentar aborrecimentos no trabalho.

A multidão de trabalhadores embrulhada na luta pela sobrevivência está privada dessa confortável liberdade de escolha, que é direito fundamental nas utopias. Não são muitos os técnicos que podem recusar boas propostas de trabalho quando não veem alternativa no horizonte. Gigantesca maioria não tem essa perspectiva e não deve ficar sujeita a tais impedimentos, restrições. E há também os casos notáveis de treinadores que marcaram a história de clubes rivais.

Oswaldo Brandão comandou o Corinthians na campanha que desembocou no título paulista em 1954. Depois, o clube enveredou por caminho longo, árido, seco de conquistas. Ganhou um Rio-São Paulo em 66, dividindo o título com Santos, Botafogo e Vasco, mas a redenção para valer veio somente em 77: de novo um campeonato paulista, outra vez com Brandão. Ele foi técnico do Santos, do São Paulo, da seleção brasileira, mas seus grandes feitos foram por Corinthians e Palmeiras — no Palestra, aliás, comandou a segunda academia e ganhou um caminhão de títulos.

De todo modo, o torcedor, se não em casos especiais, lida sem muitos problemas com o técnico que foi bem em seu time e, depois, se manda para um rival. A dificuldade é bem maior quando isso acontece com um jogador. É assim em muitas partes do mundo. Grande parte da torcida do Barcelona nunca aceitou a decisão do Figo de ir para o Real Madrid; porém, décadas antes, houve compreensão quando Evaristo, encerrado seu contrato com os catalães, fez esse mesmo caminho.

No Brasil, o imaginário nacional acolheu a ideia de que é fenômeno recente esse negócio de atleta trocar frequentemente de time. Mas, já abstraindo o período anterior à profissionalização oficial do futebol brasileiro, é fácil constatar que jogador mudando de um clube para outro, ainda que um rival, é coisa que acontece há muito tempo. Leônidas da Silva e Domingos da Guia, os principais jogadores brasileiros dos anos 30 e primeira metade da década de 40, personificavam a instabilidade dos contratos.

Leônidas, depois de jogar por São Cristóvão, Syrio e Bonsucesso, foi para o Uruguai. Voltou para ser campeão por Vasco, Botafogo e Flamengo, antes de ir para o São Paulo e mudar a história do clube. Domingos, revelado pelo Bangu, jogou no Nacional do Uruguai, Boca Juniors, Vasco, Flamengo e Corinthians; encerrou a carreira no Bangu e tem seu nome citado no hino do clube.

Heleno, principal jogador da história do Botafogo antes do aparecimento de Garrincha, jogou pelo Vasco; Ademir, craque do expresso da vitória vascaíno, foi campeão também pelo Fluminense. Até Zizinho, o melhor jogador brasileiro no período entre Leônidas e Pelé, foi vendido pelo Flamengo para o Bangu — ainda teve tempo, já nos estertores, de ganhar pelo São Paulo o Paulista em 57.

E assim foi com Gylmar, do Corinthians para o Santos; Mauro, do São Paulo para o Santos, e Pagão, fazendo o caminho inverso. Ocorreu com Nelinho, que se tornou o melhor lateral direito da história do Cruzeiro e do Atlético. Palhinha também foi da Raposa e do Galo, além de ter jogado por Corinthians e Santos. O excepcional Gerson honrou Flamengo, Botafogo, São Paulo e Fluminense. Neto e Muller estiveram nos quatro grandes de São Paulo, e Serginho em três deles — só não jogou pelo Palmeiras.

Leão levantou taças por Palmeiras e Corinthians, e Luís Pereira também mostrou seu futebol formidável pelos dois. Pita saiu da Vila para o Morumbi; Rivaldo, do Corinthians para o Palmeiras. Romário fez gols por Vasco, Flamengo e Fluminense; Bebeto, por Flamengo, Vasco e Botafogo. Dos principais clubes cariocas, somente o Botafogo não teve Edmundo, que, no entanto, jogou na base do alvinegro; em São Paulo, ele só não esteve no tricolor.

Também Rincón jogou por Palmeiras, Corinthians e Santos. Renato personifica o Grêmio, mas jogou, e muito bem, por Flamengo, Fluminense e Botafogo. Mário Sérgio ganhou títulos com a camisa do Inter e com a do Grêmio. Também campeão pelo Grêmio, Paulo Cézar, o Caju, brilhou no Botafogo, no Flamengo, no Marseille e no Fluminense — e ainda passou pelo Vasco e pelo Corinthians.

São apenas alguns exemplos de craques que migraram, trocaram de uniforme, entregaram seus talentos para clubes que se rivalizam permanentemente. Cada um deles fez a mudança sem nunca rebaixar a própria carreira ou a história dos clubes que defendeu. É notável a identificação entre Pelé e Santos, Messi e Barcelona, Ademir da Guia e Palmeiras, Ceni e São Paulo, Roberto e Vasco, Totti e Roma, Piazza e Cruzeiro. Vale para Reinaldo, que chegou a vestir a camisa do Cruzeiro, mas ficou na Toca só por alguns dias; ele mesmo diz que foi estranho, ato final antes de deixar os campos. Reinaldo tem a ver é com o Atlético.

Há os que saíram e voltaram, e os que foram embora de vez, mas que estabeleceram com um único clube ligação interminável, que não se apaga, não se desfaz: Zico e Flamengo, Falcão e Inter, Jairzinho e Botafogo. O Cruzeiro é indissociável de Zé Carlos, Dirceu Lopes e Tostão.

Não há uma regra incontornável, um único jeito. O importante é o que o jogador ou o técnico faz pelo time, o que ele constrói em seis meses ou em dez anos. O problema, hoje, é que muitos vão embora antes mesmo de escreverem pelo menos duas ou três páginas na história do clube.

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