Topo

Coluna

Campo Livre


Campo Livre

Zaidan: Pelé e Messi perante saudosistas e revisionistas

Torcedores invadem campo no México e levantam Pelé, campeão da Copa do Mundo de 1970 - AP
Torcedores invadem campo no México e levantam Pelé, campeão da Copa do Mundo de 1970 Imagem: AP

06/01/2020 04h00

Também no futebol há doutrinas, conceitos, fragmentos de ideologia. E surgem os embates, os duelos com palavras. Revisionistas e nostálgicos fazem uma disputa inofensiva, mas que não está livre de exageros. O nostálgico às vezes envereda pela idealização do passado, faz dos tempos idos um refúgio, um esconderijo onde tenta se abrigar destes dias difíceis. O passado, agora livre de seus problemas e mazelas, lhe parece melhor que hoje nas artes, na convivência com os outros, no esporte, na política, no modo de viver.

É certo que muitas coisas pioraram e que nesse ou naquele lugar a sociedade se degradou, perdeu valores fundamentais, incivilizou-se; em sua derrocada, contaminou quase tudo ao redor. É natural, pois, que muitos façam do passado sua utopia, indiferentes à contradição conceitual entre utopia e passado. O revisionismo, por sua vez, não é simples reação à idealização do passado; antes, carrega um impulso estranho de negar valor aos tempos que se foram. É outro tipo de refúgio, esconderijo.

Quando o assunto é futebol, o revisionista desdenha os feitos antigos, imagina- os consequência de facilidades que ele próprio inventou: os goleiros e zagueiros eram ruins, o jogo era demasiadamente lento, havia espaços excessivos. O revisionista faz cara de descrédito, expressa a dúvida sempre que ouve os elogios ao Leônidas, ao Puskas, ao Zizinho, ao Di Stefano. Enxerga exageros nos relatos sobre Nilton Santos, Bozsik, Domingos, Masopust, Eusébio, Djalma Santos, Heleno, Schiaffino, Coutinho; relativiza o que fizeram até os mais recentes: Ademir da Guia, Pedro Rocha, Dirceu Lopes, Cruyff, Rivellino, Beckenbauer, Scirea, Best, Nelinho, Bob Charlton, Marinho Chagas, Krol, Reinaldo, Tostão.

Ao fim, o revisionista se embrenha no desacreditar, radicaliza-se, julga que Garrincha era apenas o sujeito que só driblava para a direita e que Pelé, por nunca ter jogado em time europeu, não foi suficientemente provado. Lembro da cena de Manhattan, de 1979, quando Woody Allen diz a Mariel Hemingway que o mundo não havia começado com os Beatles. Alguns, hoje, parecem achar que o futebol foi inaugurado na Copa de 2002.

O saudosista, por sua vez, vai por caminho distinto, oposto. Em sua memória afetiva, os tempos que foram, os dias idealizados, estavam repletos de craques, não havia jogadores ruins, os campos admitiam somente os lances irrepreensíveis. Não terem jogado seu futebol extraordinário em gramados idos, eis o que o nostálgico não perdoa ao Messi e ao Cristiano Ronaldo. Há mais de 60 anos, Nelson Rodrigues sacou de sua genialidade: "De vez em quando, eu esbarro num saudosista. É um sujeito esplêndido, que vive enfiado no passado. Direi mais: vive feliz e realizado no passado como um peixinho num aquário de sala de visitas.".

Na sequência, porém, Nelson concede que o futebol antigo era "(...) a meu ver, um fenômeno vital muito mais rico, completo e intrincado. Hoje, os jogadores, os juízes e os bandeirinhas se parecem entre si como soldadinhos de chumbo.". Menos de um ano e meio depois, Nelson Rodrigues conheceu o futebol de Pelé. O camisa 10 tinha, então, meros 17 anos. O Santos venceu o América, no Maracanã, por 5 a 3. Foi no texto de Nelson a respeito daquela partida que Pelé foi pela primeira vez chamado de rei.

Concordo que, no passado, o futebol no Brasil era muito melhor, muito mais rico em talentos. É a consequência de um conjunto de mudanças, circunstâncias, erros. Não é irreversível, irrevogável, nada tem a ver com o simples passar do tempo. Não faz sentido negar a grandiosidade do passado, mas nos refugiarmos nele não resolverá coisa alguma.

Campo Livre