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Zaidan: VAR é a pior solução, com exceção de todas as outras

Estande apresenta o VAR para os dirigentes da Fifa - Jamil Chade/UOL
Estande apresenta o VAR para os dirigentes da Fifa Imagem: Jamil Chade/UOL

26/07/2019 04h00

Foi há mais de vinte anos, mas não sei quando exatamente aconteceu a conversa. Me lembro apenas que falei para o Orlando Duarte que o resultado de um jogo, no dia anterior, havia sido injusto. O Orlando, sem pressa e sem demora, respondeu: "No futebol, o resultado só é injusto quando o placar é definido por erros do árbitro.".

O Orlando estava certo. De fato, nada tem a ver com justiça se um time ataca muito, mas não faz gol; ou se o atacante, livre na pequena área, desperdiça três chances de mandar a bola pra rede; ou se o zagueiro tira a bola na linha do gol; ou se o goleiro faz quatro ou cinco defesas excepcionais ou pega dois pênaltis no mesmo jogo. Podemos, em situações assim, concluir que o atacante não teve calma ou capacidade, que o zagueiro foi suficientemente rápido e esperto, que o goleiro é mesmo extraordinário, mas não faz sentido falarmos que houve injustiça.

É coisa muito diferente, porém, quando ocorre um erro de arbitragem em um lance decisivo para o resultado do jogo. Disputas devem ter regras, e estas exigem alguém com autoridade formal para aplicá-las. É assim nas sociedades humanas, não importando se consideramos mais adequado o pensamento político de Aristóteles, ou o de Platão, ou o de Hobbes; nem mesmo os que concordam com Bakunin podem rejeitar uma instituição capaz de julgar disputas e litígios.

No esporte, até mesmo o princípio da equidade requer arbitragem isenta, imparcial e competente. Então, se o resultado de uma competição é produzido por erros de quem deve garantir a aplicação das regras, há, sim, injustiça. Mesmo em esportes cujas situações exigem do árbitro avaliações quase sempre objetivas, os erros podem acontecer; muito maior, pois, é o risco no futebol, que, apesar de ter apenas 17 regras (a maioria muito simples), é uma usina de lances que provocam decisões subjetivas e interpretativas.

Uma simples bolada na mão de um defensor é assunto para simpósio; a intensidade de um empurrão vale uma conferência. Faz 53 anos que discutimos se a bola chutada por um inglês cruzou inteiramente a linha da meta alemã, na final da Copa do Mundo. Se ainda existe dúvida em relação ao gol que ajudou a Inglaterra a vencer o Mundial de 66, sobram certezas quanto aos decisivos erros de arbitragem que determinaram vencedores e fizeram campeões. Já aconteceu na Libertadores, na Liga dos Campeões da Europa, em campeonatos nacionais e na Copa do Mundo.

A história do futebol está cheia de resultados produzidos por um árbitro que se enganou ou até por um bandeira que não enxergava muito bem, para nos limitarmos aos erros involuntários. Com a proliferação e o desenvolvimento das transmissões pela TV, o pênalti, e o impedimento, e o empurrão do atacante no zagueiro passaram a ser vistos dezenas de vezes e por diversos ângulos pelos telespectadores, enquanto o árbitro, o único com autoridade para decidir, só contava com seu próprio olhar e sua própria impressão imediata, além de um auxílio esporádico de seus assistentes. Nada de rever o lance ou de olhar por outro ângulo; nada de câmera lenta ou de imagem parada.

Havelange reinava sobre a Fifa quando cresceu a pressão para que o futebol fosse tirado da exceção e, aos seus árbitros, fosse permitido ter ajuda tecnológica. Havelange resistiu, argumentando que não seria possível garantir a novidade em todos os campos do mundo. Quando o desenvolvimento da tecnologia desafiou esse obstáculo, os chefões da Fifa apelaram para a conversa de que a popularidade do futebol depende das polêmicas provocadas pela arbitragem. Enfim, o discurso contra as mudanças era frágil demais.

Na Copa de 2010, um outro chute de um inglês, de novo contra a Alemanha, começou a mudar as coisas: Lampard bateu bem, a bola tocou no travessão e entrou um latifúndio para além da linha do gol. O árbitro e o bandeira, porém, não viram o que centenas de milhões viram. Aquele lance foi fundamental para varrer qualquer restrição ao chip capaz de informar se a bola cruzou inteiramente a linha. A porteira foi aberta, enfim. Muitas discussões e testes depois, Fifa e Board chegaram ao VAR.

É natural que a mudança incomode, interfira na dinâmica habitual do jogo e mude costumes. Não está decretada a eliminação dos erros de arbitragem, pois, ao fim, o árbitro de campo, como deve ser, continua com a palavra final; logo, suas decisões em lances interpretativos continuam sujeitas a contestações e divergências. Também o árbitro que está na sala de vídeo pode errar e não fazer a comunicação adequada ao que está no campo. Mas está claro que muitos erros e situações injustas serão evitados.

Basta que lembremos do jogo entre Alemanha e Coréia do Sul na Copa de 2018, quando o bandeira apontou impedimento de um jogador coreano, levando à anulação do gol. Com a ajuda do VAR, o árbitro viu que o passe, obviamente involuntário, havia sido do Kroos. O gol foi confirmado. Sim, ainda haverá erros e resultados injustos, mas bem menos do que havia.

O VAR é coisa recente e será aprimorado. No Brasil, estranhamente, o público não é informado sobre que dúvida levou o árbitro a ver a imagem no monitor. Coisa fácil de se corrigir. A demora até a decisão final também tem sido excessiva, mas, na média, equivale ao tempo de paralisação para reclamações e discussões que continuamos vendo nas competições que ainda não usam a tecnologia. Parafraseando Churchill, o VAR é a pior solução, com exceção de todas as outras.

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