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André Rocha

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O futebol nas redes sociais vive cada vez mais entre bolhas e trincheiras

Colunista do UOL Esporte

01/05/2021 08h13

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Em tempos de pandemia, as redes sociais são a rua. Embora um microcosmo com suas particularidades e seus comportamentos, é o termômetro possível. Afinal, os estádios estão vazios e isso muda muito a percepção geral.

Mas em qualquer lugar, as pessoas se juntam por afinidades, interesses em comum. Para amar, mas também odiar. No futebol, o amor pelo time do coração e o ódio aos rivais, históricos ou de ocasião. Ainda que muitas vezes esse sentimento não seja admitido publicamente, porque soa negativo e também entrega uma relevância que seria "passar recibo".

Só que as redes sociais possuem algoritmos. Fórmulas que cruzam dados e customizam o ambiente para você se relacionar com quem tem algo em comum. Ou possa transformar alguém em alvo, justamente por ter uma visão oposta. Se você ler um texto ou assistir a um vídeo com críticas a determinado personagem, logo surgirá uma sugestão para você se direcionar a algo produzido por ele.

A tragédia brasileira da Covid deixa os nervos ainda mais à flor da pele. Crise econômica profunda, caos político e, principalmente, o medo de morrer por um vírus cada vez mais contagioso e letal. O futebol seria uma válvula de escape, mas carrega essa tensão e empurra para a polarização.

Não basta seguir tudo que se relaciona com seu time de coração. Notícias, opiniões, análises. Vindas de jornalistas ou influenciadores. Ou daqueles que agora misturam um pouco dos dois. É preciso ver o que está sendo dito do outro lado. Ou o que quem está do seu lado pensa da "oposição".

No meio disso está uma relação capitalista. Jornalista e influenciador, para sobreviver, precisam de audiência. Uns mais, outros menos. É aí que surge uma visão de "patrão" do consumidor que compromete algo fundamental para quem trabalha com informação e comunicação: a independência.

O "cliente" se acostumou a receber o delivery como quer. No aplicativo de comida está lá o campo para preencher se você quiser que tire a cebola do sanduíche ou trocar o refrigerante por suco ou milk shake. No caso da opinião, o sujeito quer o "eco" da sua visão.

E dedicada a um só time. Não mais alguém com visão geral. Antes o jornalista mais "generalista", que trabalhava com futebol nacional e internacional, era valorizado porque poderia trazer uma opinião embasada e "de fora", mais racional, sem o envolvimento da paixão. Agora querem as impressões vindas das mesmas vísceras, do mesmo fígado. Mergulhado no mesmo caldeirão. Tem que ser "um de nós".

Nos amores e nos ódios. É obrigatório proteger o meu time e atacar os rivais. Mundo binário mesmo, preto ou branco, zero ou um. Sem cinza, sem 0,5, sem nuances. Para criticar o "nosso" lado e elogiar os inimigos, só se for entre nós. No grupo do WhatsApp. Na coluna do site ou jornal, no canal no YouTube, jamais.

Sempre com radicalização. E na tensão brasileira atual, qualquer delírio vira questão de honra. Na semana passada, dois colegas que há quase uma década escreveram um livro sobre o maior título do time do coração deles foram cobrados no Twitter: por que não exigiam a demissão do treinador que comandou a equipe naquela conquista e agora está de volta, mesmo com pouco tempo de trabalho?

E novamente a relação patrão x funcionário. O cidadão comprou o livro e se acha no direito de definir o que o profissional tem que dizer. E ainda com a visão de que "vocês são os nossos representantes na imprensa". É obrigatório defender o time. Repetindo aquilo que o sujeito pensa, claro.

Acrescente também o "contra tudo e contra todos". Há torcedores que têm certeza absoluta que os jornalistas que não amam o mesmo time que eles se juntam em um aplicativo de reunião todo dia para debater como destruir aquela agremiação. A pior notícia é que, em alguns casos, não funciona assim, mas é parecido.

Porque se o "influenciador" é representante de um time, ele necessariamente tem que perseguir o outro lado. Menosprezando ou relativizando as conquistas, amplificando e jogando uma lupa nos fracassos. Com contundência, claro. "Detonar" o inimigo e "passar pano" para o "nosso" lado. Ou só criticar quando o torcedor autoriza porque também está revoltado.

E ai daquele que tentar burlar esse algoritmo. As redes empurram para o universo do jornalista os torcedores de um determinado clube. Seja porque o profissional em algum momento assumiu o time de coração, ou o fanático desconfia que eles têm a mesma paixão. "Ele é dos nossos".

Mas se sair do roteiro e o jornalista colocar uma crítica contundente ao time de coração, liga uma sirene na cabeça binária do sujeito. Não pode! E se ele elogiar ou exaltar a conquista do rival aí está condenado mesmo. É traidor!

O mais curioso é que se o apaixonado por este rival já colou no formador de opinião o rótulo de "anti", esses elogios nem chegam a ele. Em suas redes aquele profissional só vai aparecer cumprindo o papel predeterminado: do vilão que representa o mal. E o torcedor não quer mesmo o elogio do outro lado. Afinal, seu time é poderoso, o "malvadão". Tem mesmo que ser temido e odiado.

Sim, é um hospício. E muitos que tentam manter a sanidade sendo honestos e apenas dizendo o que pensam ficam renegados às frestas desse bombardeio de luz e sombras. Só pode ser radical e previsível. Afinal, o cliente não pode ser surpreendido com mudanças que o desagradem, independentemente do contexto.

Nos jogaram entre bolhas e trincheiras e cada um tenta se salvar como pode. Neste espaço você verá sempre uma tentativa de resistência, mesmo levando umas pancadas das ondas fortes. Questão de coerência.