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André Rocha

Derrota do Flamengo é de time que não confia no treinador

Jogadores do Flamengo lamentam derrota para o Independiente del Valle na Libertadores  - Pool/Getty Images
Jogadores do Flamengo lamentam derrota para o Independiente del Valle na Libertadores Imagem: Pool/Getty Images

Colunista do UOL Esporte

18/09/2020 09h23

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O Flamengo não perdeu para qualquer time em Quito. O Independiente del Valle tem um dos melhores trabalhos da América do Sul, que vai além das qualidades de Miguel Ángel Ramírez. Espanhol que trabalhava nas divisões de base e, mesmo muito jovem, pôde dar sequência à filosofia do clube que aposta justamente em jovens para retorno técnico na equipe e financeiro com negociações futuras.

Moisés Caicedo, 18 anos, é um símbolo deste modelo de trabalho. O meio-campista foi o ponto de desequilíbrio a favor do time equatoriano, a grande novidade em relação aos confrontos da Recopa Sul-Americana. O "corta-luz" para receber na frente no primeiro gol é jogada de quem já conhece muito.

É dever reconhecer os méritos do campeão da Copa Sul-Americana e agora líder absoluto do Grupo A da Libertadores, com 11 gols a favor e nenhum contra nas três partidas que realizou. Porque aproveitar as falhas do oponente também é mérito.

Os 5 a 0 do Flamengo sobre o Grêmio na semifinal do ano passado, por exemplo, foram construídos com quatro gols originados em bolas paradas, com vacilos, induzidos ou não, do sistema defensivo do time gaúcho. Questão de coerência agora não resumir tudo aos deméritos do atual campeão sul-americano.

Só que foram muitos, de saltar aos olhos. O Flamengo sabia o que o esperava no Estádio Casa Blanca - ao menos os jogadores, já que muitos consideravam o Del Valle a equipe que tinha dado mais trabalho em 2020. E o plano, até pela altitude de 2.850 metros, pareceu mal pensado e executado.

Não é ser "engenheiro de obra pronta". Mas a pressão alta, com Gerson e Diego Ribas se juntando a Gabigol para dificultar a saída de bola e induzir o erro de Schunke, o zagueiro com passe menos qualificado, precisava de coordenação, intensidade e fôlego. Ainda assim, seria um risco permanente pela rapidez e precisão para sair da pressão de um time entrosado e bem treinado.

A "prova" de que os atletas não tinham convicção foram os buracos entre os cinco que saíam para pressionar - de maneira frouxa, diga-se - e Willian Arão mais os quatro defensores, que instintivamente se preocupavam em proteger a meta de César. Foi neste espaço entre as intermediárias que deitaram e rolaram Faravelli, Moisés e o lateral Beder Caicedo, que apoiava por dentro para que Murillo ficasse aberto na ponta no 4-3-3 habitual armado por Ramírez.

Domínio absoluto muito antes de ir às redes de César pela primeira vez. De um primeiro tempo de respeito do Del Valle ao campeão do continente, mas já de imposição. O Flamengo teve chance com Gérson e tentava atacar com Gabigol alternando com De Arrascaeta no centro do ataque e na ponta esquerda. A ideia era fazer o camisa nove e artilheiro receber as bolas longas buscando as infiltrações em diagonal e preocupar a defesa adversária que joga adiantada. Mas Gabriel sempre preferiu partir da direita para dentro.

Todos pareciam desconfortáveis. Inclusive Gerson, avançado como meia num 4-1-4-1. Sem participar da construção e ainda deixando espaços às costas que Arão não conseguia cobrir. Com tantos problemas e o desgaste pela altitude, baixar a guarda na segunda etapa foi consequência natural, mesmo com a entrada de Bruno Henrique na vaga de Diego.

Assim como os gols de Preciado, Gabriel Torres, Jhon Sánchez e Beder Caicedo saíram em ritmo de treino. Confiança altíssima e até um desejo de vingar a perda da Recopa contra um time em frangalhos. Com identidade perdida pelas mudanças nada graduais e pouco treinadas por Domènec Torrent e sua comissão técnica.

O maior problema, porém, parece ser a dificuldade de convencer os jogadores. Já não seria fácil para qualquer treinador depois do sucesso de Jorge Jesus. O catalão deixa uma impressão de hesitação, como é o seu comportamento à beira do campo. Bom lembrar que nos anos em que trabalhou como auxiliar esta tarefa era de Pep Guardiola: ex-jogador de sucesso, carismático, sanguineo, até um pouco insano. Com currículo de títulos para fazer a cabeça até dos mais resistentes, daqueles que perguntam "ganhou o quê?"

Dome pode ter perdido o grupo de vez em Quito. Cabe à direção cobrar do técnico e também dos jogadores, que podem e devem tentar discutir, com respeito, as decisões do treinador e até buscar soluções em campo sem se entregar como se fosse algo inevitável. Foi a maior derrota do Fla na Libertadores, a maior de um time defendendo o título.

Para repensar tudo também a decisão do comandante ao trabalhar pensando no jogo contra o Barcelona em Guayaquil quando o placar chegou a 3 a 0. Como se não fizesse a mínima diferença levar de cinco. E poderia ter sido mais, já que o Del Valle não tirou o pé do acelerador. Falta a Dome também a noção do realidade em que está inserido. Mesmo sem as vaias das arquibancadas é preciso entender o que o cerca.

Transições em trabalhos vencedores nunca são simples. Em 1981, depois da saída de Cláudio Coutinho, o Flamengo tentou manter tudo como estava com Modesto Bria, depois buscou uma mudança com Dino Sani. Só conseguiu aprumar quando entrou Paulo César Carpegiani, que meses antes estava em campo com Júnior, Zico e companhia. Trouxe as ideias de volta e só quando trocou Baroninho por Lico é que fez naturalmente, com aval dos ex-companheiros, uma revolução que entregaria taças e um futebol encantador.

Outros tempos, mas que sempre servem para refletir. Aqui não há defesa da demissão de Domènec. Talvez o equívoco da direção rubro-negra tenha sido não ter alguém com conhecimento mais técnico que Marcos Braz e Bruno Spindel para dialogar sobre ideias e modelos nos encontros antes da contratação.

Agora é minimizar danos e tentar dar respaldo. Porque a confiança do time no treinador parece ter se desmanchado na capital equatoriana.