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André Rocha

Elenco de Jorge Jesus e ideias de Domènec são incompatíveis no Flamengo

Filipe Luís e Kevin em disputa no clássico Flamengo x Botafogo - Thiago Ribeiro/AGIF
Filipe Luís e Kevin em disputa no clássico Flamengo x Botafogo Imagem: Thiago Ribeiro/AGIF

Colunista do UOL Esporte

24/08/2020 09h35

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O Flamengo foi muito superior ao Botafogo nos primeiros 30 minutos do clássico no Maracanã porque o fator surpresa era Pedro Rocha na ponta esquerda em um 4-3-3 e, principalmente, o lado direito do 3-4-2-1 montado por Paulo Autuori tinha problemas de posicionamento do ala Kevin com a cobertura de Marcelo Benevenuto.

Bastou ajustar para o time alvinegro controlar melhor o jogo e forçar Domènec Torrent a trocar Pedro Rocha de lado, voltando a abrir Bruno Henrique pela esquerda e centralizar Gabigol. E só ameaçar novamente numa "blitz" final, mais na fibra que na organização ofensiva até achar o empate no pênalti bem marcado e convertido pelo camisa nove e artilheiro.

Já sem Pedro Rocha em campo, substituído por Vitinho. O reserva que teve poucas chances com Jorge Jesus não é exatamente um ponteiro para abrir o campo. Pelo contrário, sempre foi mais um atacante que parte do flanco para infiltrar em diagonal e finalizar. Ou se mexe por todo ataque, como Bruno Henrique. Por isso o interesse do treinador português, que queria um substituto para o melhor jogador da Libertadores 2019 com características parecidas.

É preciso voltar à montagem do elenco rubro-negro no início de 2020 para entender as dificuldades do sucessor de Jesus no comando técnico do Flamengo. Porque tudo foi "amarrado" para funcionar como o português queria.

Gustavo Henrique veio para qualificar a zaga que perdeu Rhodolfo. Léo Pereira chegou como reposição a Pablo Marí: o zagueiro canhoto com bom passe para quebrar linhas de marcação. No meio-campo, Thiago Maia seria o reserva e a "sombra" para Willian Arão manter o bom desempenho da temporada anterior.

Pedro seria uma referência para o ataque. Porém, com mais mobilidade. Jesus gostou da experiência de ter uma dupla mais livre e intuitiva e contar também com Reinier, um meia adaptado ao ataque pela boa estatura. O centroavante vinha se esforçando para adaptar suas características ao que o treinador desejava. Mas não é tão simples, leva tempo.

Eis o grande problema do treinador catalão no Flamengo. O grupo foi montado com uma ideia de jogo mais criativa e mutante. Michael, a outra contratação na virada do ano, chegou para adicionar ainda mais "caos" à receita de Jesus. Liberdade para driblar e improvisar, pelos dois lados do campo. Não é por acaso que perdeu espaço com Domènec, que precisa de ponteiros mais inteligentes.

Como Vitinho, que Jesus vinha trabalhando para, se necessário, cumprir uma função parecida com a de Everton Ribeiro. Um ponta mais articulador, vindo do lado para dentro auxiliar os meio-campistas. Com "Dome", o camisa sete cada vez mais se converte em um meio-campista pela direita à frente de um volante no 4-3-3. E se o sistema mudar para o 4-2-3-1, sai Everton e entra De Arrascaeta.

Porque o novo treinador quer ordem para atacar. Laterais mais por dentro - Filipe Luís é o contraponto de todas as dificuldades, evoluindo como articulador dos ataques e Mauricio Isla pode colaborar, com a experiência europeia e com Jorge Sampaoli na seleção chilena - e pontas abrindo o campo. Meias e o centroavante mais ágil buscando o jogo entrelinhas. Isso força escolhas que, por caminhos diferentes, lembram os tempos de Abel Braga: Gabigol pela direita, Bruno Henrique por dentro e Arrascaeta no banco.

E ainda Diego Ribas, que entrou contra o Botafogo deixando Gerson no banco. O camisa dez é liderança positiva, exemplo de fidelidade ao clube e até melhorou com Jorge Jesus, tornando seu jogo mais vertical. Não entrega, porém, a dinâmica de Gerson no trabalho entre as intermediárias. Mas como ocupa com mais rigor os espaços na meia esquerda deve ganhar mais oportunidades com Domènec.

Adaptações que exigem um aprendizado quase do zero, porque são ideias incompatíveis com a natureza da maioria dos atletas. O intuitivo tem que se tornar racional. Os muitos erros técnicos também têm a ver com essa gestão de espaços. Antes havia campo para Bruno Henrique correr depois da pressão sufocante e da bola retomada. Agora há companheiros próximos e o adversário instalado no próprio campo. Mudou tudo e muito rápido.

Requer tempo, paciência e respaldo. Agora haverá uma semana até o jogo contra o Santos, mas ainda parece pouco. A paciência da torcida nas ruas e nas redes sociais dá a impressão de ter chegado ao limite e a falta de resultados sempre abala o respaldo. Na "lógica" do futebol brasileiro, se esse novo Flamengo não render e vencer a próxima partida, o trabalho já entrará no fio da navalha.

Ainda mais com a enorme sombra de Jorge Jesus, que manteve titulares e reservas bem definidos e elaborou alterações pensadas e treinadas com aquele toque de improviso que dificultava os rivais. Domènec quer virar tudo do avesso com o jogo de posição, ou localização. Com princípios inegociáveis e movimentos bem coordenados. A expectativa era de mudança gradual, mas esse estilo é quase um "ato de fé" para quem trabalha com ele. Não é simples, talvez seja impossível pelo contexto do apertado calendário por conta da pandemia.

Um plano contingencial pode ser a utilização do Brasileiro como "laboratório" para as disputas em mata-mata - Copa do Brasil e Libertadores. Uma ideia que tem mais a ver com Renato Gaúcho que com Jesus, mas parece mais viável para as pretensões de "Dome".

Quem contratou o treinador sabia disso, ou deveria saber. Agora é dever de todos dividir responsabilidades e tentar salvar a temporada do atual campeão brasileiro e sul-americano.