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André Rocha

Comentarista não é adivinho. Futebol se move cada vez mais rápido

Neymar comemora com Mbappé gol pelo PSG - Reprodução/site oficial PSG
Neymar comemora com Mbappé gol pelo PSG Imagem: Reprodução/site oficial PSG

Colunista do UOL Esporte

01/08/2020 09h45

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O Paris Saint-Germain foi campeão da Copa da LIga Francesa vencendo o Lyon nos pênaltis. Sem Mbappé, lesionado, Thomas Tuchel poderia ter feito a reposição naturalmente, com Sarabia entrando no ataque com Mauro Icardi. Mas escalou Verratti ao lado de Marquinhos e Gueye no meio-campo e desmontou o 4-2-2-2 quase "à brasileira", reagrupando o PSG em um 4-3-3. Deve ser a opção também para o confronto com a Atalanta pelas quartas-de-final da Liga dos Campeões, em Lisboa.

Preocupação maior com a solidez defensiva que tira Neymar da articulação e devolve o brasileiro ao lado esquerdo do ataque. Logicamente, com liberdade de movimentação para surpreender. Saindo, porém, da "zona 14", ou "Golden Zone", segundo estudo do pesquisador Tom Reilly .Mais conhecida no Brasil como "funil". Se dividirmos o campo em 18 pedaços, o 14º seria o mais centralizado, na entrada da área.

Poderia também se chamar "zona do dez". Ou seja, aquela em que Pelé, Maradona, Zico, Zidane, Messi e tantos outros craques criativos decidiram jogos com assistências, passes decisivos ou até finalizações. O 14 poderia ser uma homenagem a Johan Cruyff, mas este circulava por todo campo e podia desequilibrar até partindo da defesa, como na arrancada espetacular até sofrer pênalti na final da Copa do Mundo de 1974, contra a Alemanha.

Cruyff que é a grande referência de Jorge Jesus. O treinador português estagiou com o gênio holandês em 1993, mas ao longo do tempo desenvolveu estilo e métodos próprios. Mas não imutáveis, tanto que no Benfica, no Sporting e até no Al Hilal trabalhou com um centroavante típico na referência, mas ao chegar no Flamengo percebeu a possibilidade de formar um ataque criativo, rápido e móvel com Gabigol e Bruno Henrique.

Deu tão certo que, quando recebeu da diretoria rubro-negra o "nove" mais típico, não mexeu na dupla titular e Pedro, o contratado, foi orientado por Jesus a se movimentar e trabalhar menos de costas para os defensores. Porque tudo muda.

Até o jogo de posição, ou localização. Consagrado por Pep Guardiola no Barcelona e explicado por Thierry Henry em um vídeo que viralizou e foi retomado no Brasil com a contratação de Domènec Torrent, ex-auxiliar de Guardiola, pelo Flamengo. De fato, muito didático e interessante para mostrar que o jogador precisa esperar no espaço certo que a bola chegue.

Mas, sinto informar: isto é passado. O próprio Guardiola já afirmou que o time catalão histórico e revolucionário já ficou para trás. Algo que soa ainda mais estranho no Brasil que ainda debate o futebol apegado a velhas ideias. Como se fosse possível reproduzir em 2020 a dinâmica da seleção de 1970, do Flamengo de Zico ou do São Paulo de Telê. A tese surrada de que futebol é como andar de bicicleta, nunca se esquece. Talvez permaneça mesmo na memória, mas se não se adaptar ao contexto atual fica para trás.

O jogo de posição de Guardiola, com Torrent auxiliando, já mudou na Alemanha. Se na Catalunha os ponteiros tinham o movimento de definição na entrada em diagonal para receber a bola de Xavi, Iniesta ou Messi e finalizar, no Bayern, Robben recebia pela direita para fazer sua jogada característica: cortar para dentro e finalizar. Já Douglas Costa, em outro momento, ficava na ponta esquerda para receber a inversão de jogo e ficar contra apenas um marcador para driblar e chegar ao fundo. Dois canhotos, dois movimentos diferentes.

A própria ideia de deslocar Philipp Lahm para o meio-campo, tão exaltada na primeira temporada de Guardiola na Baviera, foi descartada nas temporadas seguintes. Era uma necessidade de momento, porém revertida até na Alemanha campeã mundial, que cresceu a partir do jogo contra a França com Lahm voltando à lateral. Inclusive nos 7 a 1...

Porque tudo se renova e é o que torna o futebol tão apaixonante. Mesmo o 2-3-5, abandonado nos anos 1930 com a criação do sistema "WM" por Herbert Chapman no Arsenal, foi atualizado por Pep Guardiola com outra execução, dentro dos parâmetros atuais. Utilizado normalmente no Bayern para massacrar adversários menos poderosos.

Mas Guardiola e Torrent tiveram que se transformar novamente ao chegar em Manchester. No City, o desafio de ser dominante na Premier League. E as ideias do jogo de posição que já tinham mudado na Alemanha levaram um choque de realidade na primeira temporada, dominada por Antonio Conte no Chelsea, executando uma outra vertente do jogo posicional, mais preocupada com a solidez defensiva.

O treinador catalão, com o suporte do seu auxiliar, adaptou a proposta à intensidade do futebol jogado na Inglaterra. Valorizando posse e pressionando no campo de ataque. Mas definindo mais rapidamente as jogadas na retomada e circulando a bola com mais rapidez. Também trabalhando o jogo aéreo, com bola parada ou rolando.

Diminuindo as longas sequências de passes e o principal: movimentando mais as peças de ataque, sem que o jogador espere tanto para participar do jogo, até por facilitar a marcação do adversário. Com o tempo, aumentando a força e a estatura da defesa para ganhar os duelos também no físico.

Domènec Torrent participou de todo esse processo que terminou com o título inglês em 2017/18. O City se impôs e quebrou recordes porque Guardiola foi inteligente, não teimoso ou conservador na visão de futebol. Aprendeu com o rival Jürgen Klopp na Alemanha contra o Borussia Dortmund e seguiu assimilando conceitos na Inglaterra diante do Liverpool.

Klopp, que não é bobo, também bebe das ideias de Guardiola. O jogo "rock'n'roll", do "Gegenpressing" e de ritmo frenético, precisa de algum cuidado com a bola para não se esfacelar num bate-volta de 90 minutos durante uma temporada inteira. O físico e a mente necessitam de uma variação de ritmo. Mudar para continuar influente e vencedor.

É o que Torrent provavelmente fará no Flamengo. Mesmo um treinador com currículo mais robusto teria dificuldades para mexer na estrutura de um trabalho vencedor e disruptivo no país. Até por envolver gestão de pessoas, normalmente avessas a alterar o que está dando certo. Mas paradoxalmente terá que ganhar adaptações também, ainda que pontuais.

Porque os adversários no Brasil e na América do Sul estudam obsessivamente o campeão nacional e da Libertadores. O Fluminense já impôs algum obstáculo no Carioca e Jorge Sampaoli e seu Atlético Mineiro certamente virão babando na estreia do Brasileiro, dia 9 no Maracanã.

Outro concorrente que pode criar problemas é o Corinthians de Tiago Nunes. Outrora execrado por péssimos resultados, inclusive na Libertadores sem vaga na fase de grupos, criticado na volta por jogar parecido com a "identidade Corinthians", com a qual o clube queria romper depois da saída de Fabio Carille.

Mudou com as alterações no time e o retorno de Jô. Com um centroavante que consegue reter a bola na frente e dar sequência às jogadas é possível sair de trás tocando a bola e chegar com mais jogadores ao ataque. Fundamental para o Corinthians, descartável para Jorge Jesus no Flamengo por conta das circunstâncias. Talvez seja também para seu sucesso.

Porque tudo muda. E o futebol se move cada vez mais rápido. Por isso é preciso entender o trabalho do comentarista ou analista. Projeção não é previsão, favoritismo não é certeza de vitória. Ninguém é adivinho com bola de cristal. E nem tudo pode ser avaliado na base da intuição.

Por exemplo, no confronto entre Corinthians e Red Bull Bragantino, é claro que a hipótese do time de maior tradição e tricampeão paulista se impor diante do "novato", com time jovem e história bem menos repleta de conquistas, nunca foi descartada. No fundo era até a mais provável pelo contexto, mesmo considerando que o time mais popular de São Paulo não poderia contar com o apoio da torcida no estádio. Mas não seria justo desconsiderar a boa campanha do time de Bragança, líder da fase de grupos e que tinha apresentado bom desempenho contra os grandes. A análise precisa ter conexão com o que já aconteceu.

Agora, com a classificação para a semifinal que não terá Santos e São Paulo, o Corinthians, considerado fora da briga e com Tiago Nunes ameaçado, vira favorito à vaga na decisão e até ao título, considerando o histórico recente em jogos decisivos contra o Palmeiras, favorito na outra semifinal.

Mas tudo pode virar do avesso novamente. Ainda mais depois de longa inatividade por conta da pandemia. Não há certezas e convicções precisam ser revistas o tempo todo. Por Tuchel, Guardiola, Klopp, Jesus, Torrent, Nunes e por todos nós. Melhor assim.