Caso Silvio Almeida: por que acusações de assédio ainda surpreendem
Ainda me desenrolando da posição fetal em que passei boa parte do final de semana, encontro-me aqui tentando escrever algo sobre a dor das mulheres. Sobre as dores individuais revividas, as feridas expostas e os traumas inevitavelmente acordados diante de casos públicos de violência contra nós.
Depois de lidarmos com a história de uma maratonista olímpica incendiada e morta pelo companheiro, e o de uma francesa dopada e estuprada por dezenas de homens com a organização do marido, o episódio Silvio Almeida caiu como um soco na boca do estômago.
Sim, o ex-ministro é inocente até que se prove o contrário, assim como suas acusadoras. O que desejo abordar aqui não é sua culpa, e sim a reação de muita gente às denúncias contra ele.
Nossa, mas logo ele? Não acredito! Como é possível? Um defensor dos direitos humanos! Um intelectual, uma referência, um herói! Nossa, que surpresa. Perplexidade. Nunca aconteceu antes, inclusive. Nunca um homem se aproveitou de sua posição para assediar mulheres. Inédito.
Façam-me o favor.
Ah, mas nas vésperas do Sete de Setembro? Certeza que é político! Diga-me, então, nobre estrategista: qual é a data ideal para revelar acusações e impedir que outros crimes aconteçam? Dia 8 fica melhor para você?
Ah, mas só deram bola porque eram pessoas importantes. Pois é, nossa voz só costuma carregar peso em grupo ou quando uma de nós tem destaque público. E olhe lá, porque nunca faltará gente tentando desqualificar até as mais qualificadas de nós.
Ih, lá vem ela de novo falando em vítima de caso que ainda não foi julgado. Repito: todos e todas são inocentes até que se prove o contrário. Só notem uma coisa aqui com a tia.
Dados do Ipea que levam em conta a subnotificação estimam que duas mulheres sejam estupradas por minuto no Brasil, todos os dias. Uma seis ou dez no tempo que levou para você ler esse texto.
De onde vem, então, o espanto com as denúncias de violência? Os números apenas dão conta de um cenário atroz que todas nós conhecemos na carne. A mão na perna embaixo da mesa, a massagem no ombro, a roçada no metrô. Esse é o nosso cotidiano. E ninguém parece se importar muito com isso ou querer saber mais sobre o que passamos.
O que lhe pega é o currículo do acusado? Um cara tão inteligente e loquaz não faria isso. Fico me perguntando se as pessoas realmente acreditam que o trabalho do homem diz algo sobre seu caráter ou se, no fundo, não se importam com a trilha de destruição deixada por alguém com tamanha "contribuição" para a sociedade. Afinal, João de Deus salvou tanta gente, né?
Arrisco dizer que o que mais dói nesses momentos não é uma estupefação com os nomes envolvidos. O luxo da surpresa nos foi roubado há tempos, em todas as vezes nas quais passamos por situações semelhantes ou piores.
O que mais dói é testemunhar os poréns, os questionamentos, as ressalvas. É testemunhar o quanto nossa palavra e nosso corpo seguem valendo tão pouco. É perceber quantas pessoas (incluindo mulheres) preferem buscar justificativas mirabolantes a responsabilizar homens pelos próprios erros. Mesmo diante dos fatos, das nossas histórias e de uma realidade tão abjeta quanto simples.
Façam-me um favor, de boa, na moral: acreditem em mulheres. Apenas acreditem e opinem com cuidado. A gente realmente não precisa de nenhum adicional de sofrimento.
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