Vale compra créditos de carbono em área suspeita de irregularidade

Apresentado pela Vale como uma das principais apostas para compensar suas emissões de gases de efeito estufa, o projeto ABC Norte REDD, do Grupo Algar, é desenvolvido em um território na Amazônia com registros de exploração irregular de madeira e foi denunciado pelo Ministério Público do Pará.

A iniciativa, que é realizada na Fazenda Pacajá, entre os municípios de Portel e Bagre, no Pará, promete conservar 140 mil hectares de floresta amazônica — quase o tamanho da cidade de São Paulo — e gerar 1 milhão de créditos de carbono por ano até 2047. No entanto, os seus reais efeitos climáticos esbarram em irregularidades ambientais, o que inclui desmatamento e degradação florestal.

Em setembro, o Ministério Público do Estado apresentou denúncia à Justiça com base em uma fiscalização do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) que apontou irregularidades na Fazenda Pacajá. O Plano de Manejo Florestal Sustentável que é desenvolvido no local foi alvo da Operação Custódia, em novembro de 2023, quando os fiscais identificaram ao menos quatro infrações por exploração irregular de madeira.

O Ministério Público afirma que a Madeireira J&Y, contratada para executar o manejo, "utilizou artifícios fraudulentos para forjar créditos florestais inexistentes e emitir documentos públicos com conteúdo ideologicamente falso, com o intuito de ocultar a origem ilícita da madeira e conferir aparência de regularidade à sua comercialização e transporte".

A Madeireira J&Y foi multada pelo Ibama em R$ 208 mil por exceder o volume autorizado de corte de árvores e inserir informações falsas no sistema oficial de controle. Além disso, os fiscais ambientais afirmam que a empresa falhou na rastreabilidade das toras e gerou desperdício. "Tais irregularidades servem como elementos que caracterizam a má execução das atividades de manejo florestal por parte da empresa detentora", conclui o laudo de fiscalização obtido pela reportagem.

O Ibama apreendeu toras sem o devido documento de origem e identificou árvores com nomes trocados. As madeiras das espécies mais exploradas foram lançadas no sistema como sendo de outras espécies, como o caso do taxi-pitomba — identificado pela empresa como jatobá ou angelim-amargoso.

A denúncia por irregularidades no manejo florestal do ABC Norte REDD pede a condenação da madeireira pelo crime de falsidade ideológica por inserir dados falsos em sistemas públicos. O pedido do MP foi apresentado em 8 de setembro e ainda aguarda manifestação da Justiça, que pode ou não aceitar a denúncia.

Apesar das irregularidades, a Vale, que é uma das principais patrocinadoras da COP30, apresentou o projeto parceiro como exemplo de conservação florestal. Em fevereiro de 2023, nove meses antes da fiscalização do Ibama, a mineradora anunciou a compra de 133 mil créditos do projeto ABC Norte do Grupo Algar, o que equivaleria à proteção de aproximadamente 50 mil hectares de floresta naquele ano. O projeto contribuiu para a companhia afirmar ter alcançado 50% da sua meta de proteção florestal até 2030.

Ao divulgar a compra dos créditos de carbono do ABC Norte, há dois anos, a Vale disse que "a Fazenda Pacajá atende aos requisitos legais de manejo sustentável como instrumento de conservação e preservação de florestas nativas". Afirmou ainda que todas as árvores da propriedade são inventariadas e georreferenciadas, o que garantiria rastreabilidade e transparência do manejo.

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No entanto, não foi exatamente isso que fiscais do Ibama encontraram na fazenda e nem o que revelam dados de satélite analisados pela InfoAmazonia. Na área da fazenda onde é realizado o manejo madeireiro, houve degradação ambiental de mais de 2.500 hectares de mata nativa em 2024, segundo dados do Imazon. Já o desmatamento por corte raso na Fazenda Pacajá - aquele em que há extermínio completo da vegetação - registrou em 2024 o maior pico desde 2017, ano em que o projeto começou a operar, conforme análise de dados de satélites do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Entre 2017 e 2024, houve desmatamento de 341 hectares na área da fazenda, sendo quase a metade deles (161,1 hectares) dentro da área do projeto de carbono.

'Dizem ser verdes, mas estão desmatando'

Moradores da região do Alto Rio Camapari, em Portel (PA) — uma das comunidades situadas dentro da área do projeto —, afirmam que o ABC Norte REDD invade territórios tradicionalmente ocupados por populações ribeirinhas. "Eles dizem ser uma empresa verde, mas estão desmatando nas áreas dos ribeirinhos. Tínhamos um acordo para respeitarem as nossas áreas, mas eles não estão cumprindo", contou Francisco Rodrigues de Melo, que presidiu a Associação dos Trabalhadores Agroextrativistas do Alto Camapari.

O acordo previa que a faixa de 50 hectares a partir do rio Camapari seria de uso exclusivo das comunidades. Em outubro, moradores flagraram funcionários da empresa dentro da área acordada para exploração de madeira, conforme vídeo obtido pela reportagem. Uma reunião entre moradores e responsáveis pelo projeto está marcada para o próximo dia 8 de novembro.

Para a pesquisadora Marcela Vecchione Gonçalves, do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará (UFPA), a coexistência de projetos com impactos ambientais com a geração de crédito de carbono é "ambiental e socialmente incompatível". "A degradação não aparece de forma tão evidente quanto o desmatamento nos projetos REDD. Mas, quando ela ocorre, o resultado é o que chamamos de raleamento da vegetação florestal — um processo que compromete o projeto e afeta a biodiversidade".

Os recursos de créditos de carbono são dados a projetos que — em tese — provam que reduzem mais emissões de gás de efeito estufa do que se o investimento não existisse. Os créditos podem vir do desmatamento evitado ou da mudança de fontes de energia. Cada crédito equivale a 1 tonelada de carbono que deixou de ser emitida.

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Já os planos de manejo madeireiro costumam ser aprovados em ciclos de 10 a 35 anos para que a extração de madeira seja seletiva de modo a manter a floresta em pé.

Outros lados

Procurada pela InfoAmazonia, a Vale afirmou que o projeto ABC Norte REDD, do qual adquiriu créditos de carbono, foi selecionado com base em critérios técnicos e padrões internacionais, com o objetivo de "contribuir para a conservação florestal". A empresa declarou que "adota processos rigorosos de avaliação de riscos antes de estabelecer qualquer parceria" e que todas as informações disponíveis à época foram analisadas com "responsabilidade e transparência".

A mineradora argumentou que a área do projeto está regularizada, com licenciamento ativo, sem pendências judiciais e com fiscalização e relatórios periódicos aprovados por certificadoras independentes. "Todas as aberturas realizadas pela ABC Norte são devidamente licenciadas para fins de manejo e quaisquer ocorrências de exploração ilegal por terceiros são prontamente comunicadas às autoridades competentes". Questionada sobre a denúncia apresentada pelo MP, a mineradora disse que aguarda a manifestação do juiz sobre o caso.

O Grupo Algar disse que não iria se manifestar sobre os achados da reportagem.

A InfoAmazonia tentou contato com a Madeireira J&Y, mas não obteve retorno até o momento da publicação deste texto.

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Leia a investigação na íntegra em infoamazonia.org.

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