Sem água, comunidade em Balneário Camboriú improvisa rede de abastecimento
Hygino Vasconcellos
Colaboração para Ecoa, de Balneário Camboriú (SC)
09/10/2025 05h30
Tomar banho na casa da auxiliar de serviços gerais Arliane Pereira, 38 anos, não é tarefa das mais fáceis. Não há banheiro no imóvel, encravado em uma região de morraria na Vila Fortaleza, em Balneário Camboriú (SC), a cerca de 1,7 km do "prédio do Neymar", como ficou conhecido o arranha-céu no qual o jogador é dono de uma das coberturas.
Para se lavar, Arliane tem duas alternativas: ir até a casa de uma amiga - em outro ponto da cidade - ou tomar banho de "baldinho" na cozinha, próximo da entrada da casa. A primeira opção requer mais organização e é mais demorada - podendo levar mais de 1h, o que faz com que ela opte por essa alternativa pelo menos uma vez na semana. Nos outros dias, o banho ocorre no "chuveiro improvisado". Mas também leva tempo para aquecer a água no fogão e secar o chão, feito de tábuas de madeira - é através delas que o líquido ensaboado corre morro abaixo.
Não há rede de esgoto nem água tratada na residência de Arliane. Mas essa realidade não é exclusiva dela. No Brasil, quase 23 milhões de pessoas não têm acesso à água tratada, e mais de 90 milhões não contam com coleta de esgoto, segundo o Instituto Trata Brasil, com base em dados do SNIS (Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento). Os dados são de 2023.
Para conseguir água, ela e parte dos moradores da Vila Fortaleza recorrem a um imbricado sistema que faz a captação em diferentes veios d'água, chamados pelos moradores locais de "minas" ou "cachoeira". A rede improvisada começa em "poças" no meio do mato e segue por um emaranhado de tubos que correm em direção às caixas d'água - compradas e compartilhadas por várias famílias ao mesmo tempo. A água desce pela própria força da gravidade.
Alguns desses reservatórios ficam dentro da mata e outros, menores, mais próximos das residências. Nos primeiros, instalados em pontos mais altos, é possível ver terra no fundo das caixas d'água. Porém, a presidente da associação de moradores e gerente de restaurante, Daiana Nascimento, 30 anos, explica que a passagem de um reservatório para outro acaba não levando a sujeira pela tubulação por conta da decantação. "A água é potável", garante. A família dela foi uma das primeiras a se mudar para a área, em 2012. Na época, a falta de água afugentava novos moradores. "A gente ficou dois a três dias sem água. Daí meu pai comprou as mangueiras e saiu com meu primo no meio do mato com facão procurando veio d'água. Foi assim que o sistema foi criado".
A rede foi ampliada pelos próprios moradores, com captação em outros veios d'água, mas volta e meio o sistema apresenta falhas por vazamento ou entupimento - por conta de folhas ou ar na tubulação. Hoje cerca de 100 dos mais de mil moradores da vila seguem usando o sistema da água das "minas". Porém, o relato de desabastecimento persiste. Quando Ecoa esteve na casa de Arliane, a família estava há dois dias sem água e a louça na pia se acumulava. Como alternativa, ela recorreu à vizinha. "A falta de água é quase que diária. Hoje meu marido não conseguiu ir no mato ver o que aconteceu porque teve que trabalhar."
Por cerca de três anos, Daiana levava em média 2 horas para reestabelecer o fornecimento de água, entre sair de sua casa, encontrar o problema e voltar. Cansada, em 2015 ela se juntou a outras 14 famílias e abriu um poço artesiano.
Na casa de Daiana - assim como na maioria das casas da Vila Fortaleza - há fossa séptica, para onde corre o esgoto. Em alguns pontos, uma é interligada à outra. Porém, o uso desse recurso deveria ser considerado como "solução alternativa", entende a CEO da Trata Brasil, Luana Pretto. Um dos riscos é contaminar o solo e, consequentemente, os poços artesianos.
Segundo o procurador-geral do município de Balneário Camboriú, Diego Montibeller, um acordo judicial está prestes a ser fechado em uma ação movida pelo Ministério Público.
Nele, a prefeitura se compromete a garantir saneamento básico - água tratada e rede de esgoto - para as famílias da Vila Fortaleza. "Nesse acordo judicial, vão ficar obrigações para a associação de moradores e para o município", observa Montibeller. Por outro lado, as famílias precisam fazer a regularização dos lotes.
A Vila Fortaleza é considerada uma ocupação pela prefeitura de Balneário Camboriú. Porém, os moradores afirmam que compraram os terrenos. O advogado Luciano Raizer, que representa a vila, explica que as primeiras áreas foram adquiridas de um homem que tinha uma procuração do proprietário. "Depois ele (o dono do terreno) cancelou a procuração e entrou com ação de reintegração de posse", explica.
Um risco para todos
Estudo da Trata Brasil divulgado em março deste ano mostra que no Brasil foram registradas 344,4 mil internações por DRSAI (Doenças Relacionadas ao Saneamento Ambiental Inadequado) no ano passado. Do total, 47,6% foram por conta de doenças de transmissão feco-oral, como diarreias, salmonelose, hepatite A, entre outras.
Ao todo, 20% dessas internações foram de crianças de 0 a 6 anos, período chamado de primeira infância. "'É a fase da vida em que a pessoa tem o maior pico de desenvolvimento físico, intelectual e neurológico. De 0 a 2 anos, 90% da energia é para o desenvolvimento do cérebro. Imagina essa criança com episódios sucessivos de diarreia e sofrendo muitas vezes de desnutrição? Vai afetar o desenvolvimento neurológico de forma que não se consegue recuperar ao longo da vida", observa Pretto.
Além disso, por causa das doenças, muitos meninos e meninas acabam perdendo aulas e até se afastando da escola. "A diferença de escolaridade média de uma criança que teve acesso ao saneamento para uma que não teve é de 1,8 anos. Isso tem um impacto para entrar ou não na faculdade", complementa a CEO da Trata Brasil.
Os impactos têm efeito prolongado. "Avaliando 35 anos de mercado de trabalho, concluímos que a renda média de uma pessoa que não teve acesso ao saneamento quando criança é 46% inferior. Muitas vezes, isso impossibilita de comprar casa própria, dar um futuro melhor para seus filhos", complementa Pretto.
A universalização plena do saneamento básico, estima o instituto, traria R$ 1,4 trilhão para o país e reduziria em R$ 25 bilhões o custo em saúde.
O médico e professor da Univali Alessandro Scholze lembra que a cada US$ 1 investido em saneamento, se pouparia cerca de US$ 4 em gastos em saúde, segundo dados da OMS (Organização Mundial da Saúde). "A gente conseguiria ter recursos destinados para outras questões à medida que a gente garantisse saneamento básico em primeiro lugar", diz Scholze.