Falta de saneamento básico adoece crianças e ameaça futuro no Brasil

Ler resumo da notícia
Quatro em cada dez crianças de até 6 anos se afastam de creches e escolas por questões relacionadas à falta de saneamento básico, revelou um levantamento publicado em outubro pelo Instituto Trata Brasil. Em números absolutos, são mais de seis milhões de crianças — o equivalente à população inteira do Paraguai.
A ausência de saneamento aumenta a exposição a diversas doenças, como diarreia, hepatite A, parasitoses intestinais e, em situações mais graves, cólera e febre tifoide.
"Crianças frequentemente doentes faltam mais às aulas e, em muitos casos, precisam de internação. Esse ciclo atrasa o aprendizado, gera defasagem escolar e pode levar à desistência dos estudos", alerta a pediatra Vanessa Tirloni, especialista em neonatologia no Hospital Municipal Dr. Moysés Deutsch, em São Paulo.
De acordo com o Unicef, no Brasil, mais de 12 milhões de crianças e adolescentes vivem sem coleta adequada de esgoto e outros 2,1 milhões não têm acesso garantido a água limpa dentro de casa.
Em um ano, mais de 300 mil crianças são internadas por doenças relacionadas à falta de saneamento. Esses episódios, que muitas vezes se repetem com frequência, afetam também o desenvolvimento.
"A criança de zero a dois anos usa 90% da energia consumida na formação do cérebro. Quando essa energia precisa ser dividida com a luta contra doenças, o desenvolvimento cerebral fica prejudicado", alerta Luana Pretto, presidente executiva do Instituto Trata Brasil.
Para meninas e adolescentes, a situação não é melhor: sem banheiros adequados, muitas abandonam os estudos durante a menstruação.
"Crianças de áreas sem saneamento enfrentam ainda estigmatização, vergonha e exclusão social. A falta de condições básicas de higiene afeta a autoestima, especialmente na adolescência", diz a infectologista Renata Manganaro, do Hospital Beneficência Portuguesa de São José do Rio Preto (SP).
Entraves
O Marco Legal do Saneamento, aprovado em 2020, fixou metas ambiciosas: até 2033, 99% da população deveria ter acesso à água potável e 90% ao tratamento de esgoto. Mas a realidade mostra outro cenário. Um relatório do CLP (Centro de Liderança Pública) aponta que, no ritmo atual, a universalização pode demorar até 2070 para se concretizar.
"O Brasil investe em média R$ 126 por habitante ao ano em saneamento, quando deveria investir R$ 223", diz Luana Pretto.
Um dos problemas observados pelos especialistas é que obras de saneamento básico geralmente são caras e demoradas — ou seja, dificilmente "cabem" dentro de um único mandato de quatro anos de prefeito ou governador.
"São projetos com alto impacto e baixo retorno político pois geram gastos altos, impactam na mobilidade e na rotina das cidades e, quando finalizadas, geralmente estão embaixo da terra, não dão voto", afirma pesquisador Cristiano Boccolini, coordenador do Observatório de Saúde na Infância.
Os dados reforçam essa lentidão. De acordo com o SNIS (Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento), em 2022 apenas 56% da população tinha acesso à rede de esgoto. "A cobertura é desigual. No Norte, só 14,7% tinham atendimento, enquanto em São Paulo esse número passava de 90%", afirma Daniel da Mata, professor da FGV-EESP (Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas).
Caminhos para acelerar a mudança
Apesar das dificuldades, há sinais de avanço. O Censo de 2022, por exemplo, mostrou que, entre 2010 e 2022, todos os estados brasileiros registraram aumento da proporção da população residindo em domicílios com coleta de esgoto.
Nesse sentido, a regionalização dos serviços, em que municípios se unem para dividir custos, tem sido vista como uma alternativa viável para acelerar os avanços da área. Também se discute a criação de uma tarifa social para garantir que famílias de baixa renda consigam manter a conexão com a rede de saneamento.
Segundo os especialistas, os benefícios de investir são significativos. "O acesso à água tratada e ao esgoto pode reduzir em até 80% as mortes por doenças diarreicas", diz a infectologista Renata Manganaro, citando dados da OMS. Além disso, cada R$ 1 investido em saneamento economiza até R$ 4 em saúde pública.
Segundo Daniel da Mata, os ganhos aparecem já na gestação: "Recém-nascidos de mães que tiveram acesso ao saneamento desde o início da gravidez nasceram com peso maior e menos chances de prematuridade. Isso mostra que o impacto começa antes mesmo do nascimento."
Para Luana Pretto, o saneamento é um fator capaz de romper ciclos de pobreza. "Quando há acesso, a criança permanece mais tempo na escola, tem notas melhores e, no futuro, maior renda média. Sem isso, perde-se quase metade do potencial de ganhos ao longo da vida adulta."



























Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.