Fundo indígena brasileiro quer tomar conta das finanças da natureza

Em um ateliê perto da floresta, um grupo de mulheres corta, costura e pinta tecidos com padrões tradicionais para um coletivo de moda, usando máquinas industriais adquiridas com dinheiro do primeiro fundo comunitário amazônico totalmente administrado por povos indígenas.

Fundado em 2020 para produzir máscaras contra a Covid-19, o coletivo de moda indígena Ateliê Derequine veste modelos e participa de desfiles em Manaus, proporcionando empregos e uma plataforma para campanhas de promoção dos direitos indígenas.

"Levamos a política para as passarelas, e já levantamos banners pela demarcação" de territórios indígenas, disse Vanda Witoto, responsável pela articulação do Ateliê Derequine.

O crescimento do coletivo foi possibilitado por um investimento de R$ 50 mil em 2023 do Fundo Indígena da Amazônia Brasileira, ou Podáali, o primeiro fundo da floresta amazônica totalmente administrado por povos indígenas.

Na língua Baniwa, Podáali significa dar sem esperar nada em troca.

O Ateliê Derequine teria tido dificuldades sem o fundo Podáali, de acordo com Vanda.

Quando destinam financiamento a povos indígenas, instituições financeiras convencionais "só querem plantar árvores", disse ela.

"Eles não se importam com nossas vidas reais. A gente vai a eventos internacionais e não tem interesse em conversar com a gente", acrescentou.

O coletivo de moda trabalha com redes indígenas na Amazônia, de onde comunidades fornecem sementes usadas para botões e fechos de roupas.

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Já os designs das roupas atraem apoio muito além da comunidade indígena, de acordo com as organizadoras e o Podáali.

O fundo Podáali, lançado em 2019 pela Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira), faz parte de um conjunto crescente de instituições financeiras ligadas a entidades políticas de comunidades indígenas e outras comunidades locais.

O movimento vem ganhando força desde 2021, quando a ONG ambiental Rainforest Foundation Norway publicou um relatório mostrando que, na década anterior, apenas 1% do financiamento global para mitigação e adaptação climática havia sido direcionado a essas populações.

Nas negociações climáticas da COP26 da ONU em Glasgow naquele ano, países ricos e instituições filantrópicas se comprometeram a aumentar o financiamento para povos indígenas e outras comunidades que possuem direitos à terra em áreas com natureza preservada.

De acordo com dados da Rights and Resources Initiative, uma coalizão global para promoção de direitos à terra, US$ 2,22 bilhões foram desembolsados para que essas comunidades pudessem proteger e gerir a terra entre 2021 e 2024 - 38% a mais do que nos quatro anos anteriores, mas ainda uma pequena quantia em comparação com o total global.

"Há entidades que... não querem romper com posturas 'colonialistas'", e marginalizam investimentos em comunidades indígenas e outras comunidades locais, disse Juan Carlos Jintiach, secretário executivo da GATC (Aliança Global das Comunidades Territoriais).

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Grande parte do investimento em clima e biodiversidade administrado a partir do exterior é gasto em burocracia antes de chegar às comunidades locais, disse ele.

Um relatório publicado ano passado pelo Forest Tenure Funders Group, uma coalizão de países ricos e filantropias que se comprometeram a destinar US$ 1,7 bilhão para comunidades locais até 2025, concluiu que apenas 10,6% do dinheiro que seus membros desembolsaram em 2023 foi diretamente gerenciado por elas.

Ao criar seus próprios fundos, o movimento indígena busca ter um controle mais direto sobre recursos, que procura distribuir de acordo com prioridades locais, com burocracia simplificada, de acordo com um relatório de 2023 da Shandia, uma plataforma lançada pela GATC.

Vanda Witoto arruma uma blusa com estampa de casco de tartaruga em um cabideiro na sede do Ateliê Derequine em Manaus
Vanda Witoto arruma uma blusa com estampa de casco de tartaruga em um cabideiro na sede do Ateliê Derequine em Manaus Imagem: Nathalie Brasil - 12.mar.2025/Fundação Thomson Reuters

O Podáali faz parte de uma rede de nove fundos de comunidades amazônicas do Brasil, que também incluem quilombolas e outros grupos que dependem da floresta.

A região é líder na criação desses mecanismos financeiros, a maior parte deles gerenciada por mulheres, disse Aurelio Vianna, coordenador de projetos da ONG internacional Tenure Facility, que ajuda a estruturar fundos comunitários e é uma das financiadoras do Podáali.

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Os fundos estão sendo impulsionados pela liderança indígena "apesar de um enorme retrocesso global" contra políticas focadas na natureza, como o corte pelo governo dos EUA de iniciativas climáticas, disse Vianna.

Burocracia simplificada A sede do Podáali fica em um prédio de escritórios no centro da cidade, longe das áreas turísticas. Todas as janelas e portas dando acesso aos escritórios são reforçadas com grades de metal para segurança.

Rose Meire Apurinã, vide-diretora executiva do Podáali, disse que as decisões sobre o financiamento são baseadas em questionários simples para evitar obstáculos burocráticos.

Em vez de uma abordagem de cima para baixo que prescreve os tipos de iniciativas nas quais as comunidades devem se concentrar, o fundo quer "fortalecer o que já está sendo feito", disse ela.

Em 2023 e 2024, o Podáali concedeu entre R$ 20 mil e R$ 50 mil para 77 iniciativas.

O dinheiro foi usado, em parte, para comprar drones para vigilância florestal e para financiar protestos contra projetos de lei antiambientais em Brasília.

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No ano passado, o Podáali arrecadou R$ 9 milhões, principalmente com parceiros internacionais como o Wellspring Philanthropic Fund, Christensen Fund e Nia Tero Foundation, com sede nos EUA.

Com a ajuda do Podáali, o movimento indígena do Brasil vem buscando expandir esses fundos para além da Amazônia.

Na Semana do Clima de Nova York, no ano passado, a Apib, a maior organização guarda-chuva indígena do Brasil, lançou um novo fundo chamado Jaguatá, estruturado com o apoio do Podáali.

O coordenador da Apib, Dinamam Tuxá, disse que financiadores vêm priorizando a icônica Amazônia ao invés de áreas naturais menos conhecidas internacionalmente, como o Cerrado, apontado como o bioma mais desmatado do Brasil em 2024 pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais.

O Jaguatá quer superar essa lacuna.

"Nosso desafio é tornar visível que todos os biomas estão conectados", disse Dinamam.

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*Edição de Jack Graham e Ellen Wulfhorst. Reportagem originalmente publicada no site Context e republicada com autorização da Fundação Thomson Reuters

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