Muro da sede: o efeito pouco conhecido da separação entre os EUA e o México

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Considerada Patrimônio da Humanidade pela Unesco, a Reserva da Biosfera El Pinacate e Gran Desierto de Altares, no México, está dividida.
Desde 2018, um muro de mais de 3.000 km que divide o México e os Estados Unidos separou não apenas os dois países, mas também dezenas de espécies, incluindo animais ameaçados de extinção. Um dos principais impactos causados pela construção foi a restrição a um item essencial para a sobrevivência: a água.
Para reduzir os danos causados pela muralha, um grupo de voluntários usa recursos próprios para colocar bebedouros ao longo do território, que é parte do Deserto de Sonora. A iniciativa foi encabeçada por Federico Godínez Leal, que vive na região e atuou como diretor da reserva durante 13 anos, até 2017.
O muro foi construído supostamente com o objetivo de evitar a passagem de migrantes. Mas, para isso, não serve. É um muro de 9 metros de aço e os migrantes continuam a passar livremente. O efeito que causou foi, na verdade, um impacto na biodiversidade.
Federico Godínez Leal, ex-diretor da reserva e atual voluntário, em entrevista a Ecoa
Por que o muro causa problemas aos animais?

Existente desde 1991, apenas em 2018 que sua construção foi intensificada de forma unilateral pelo governo dos Estados Unidos. Leal afirma que não houve consultas às comunidades locais ou mesmo às agências ambientais para investigar o que a estrutura poderia causar na região.
Foi uma construção totalmente unilateral. E não apenas de Trump, já que Obama também contribuiu para a construção desse muro. Não consultaram a sociedade civil ou agências ambientais. Começaram a construir do nada sem ver os efeitos que isso traria.
Federico Godínez Leal
Os impactos do muro na biodiversidade foram sentidos desde o começo. Para a construção do muro, houve uma perda de flora local da reserva, já que foi necessário desmatar as áreas onde estão as estruturas. Além disso, a presença de máquinas afugentou diversos animais, explica Leal.
Tudo era um ecossistema. E, ao romper a cadeia, sobretudo com os mamíferos maiores, como raposas, coiotes, vemos esse equilíbrio se rompendo. Talvez não seja visto de imediato, mas durante as próximas décadas. Mesmo que seja um deserto, a vida aqui é abundante, porque está adaptada a essas condições. Já vemos coiotes, javalis, carneiros selvagens [espécie ameaçada] mortos. Sobretudo por falta de água. Mas também por comida, porque choveu menos e a única possibilidade de a flora silvestre sobreviver é por meio da água da chuva.
Federico Godínez Leal

Um dos principais problemas foi a questão da água. A reserva é uma zona do deserto de Sonora, que engloba os territórios tanto dos Estados Unidos quanto do México. A região é escassa em água e um dos principais mananciais ficou no território ao norte, que antes era de livre acesso para a fauna local.
Os mananciais servem como uma espécie de oásis e ficaram na parte norte do muro. Então, a fauna que ficou na parte sul está sem fontes permanentes de água. Agora, esses animais dependem da água da chuva. Mas, como estamos em um deserto, chove muito pouco.
Federico Godínez Leal
Mudanças climáticas também impactam o acesso à água. Segundo Leal, a média de chuva na região é de 150 mm anuais, mas nos últimos anos a marca não passa de 50 mm.
Além de ter sido diretor da reserva, eu nasci e vivi em Altar Sonora durante os últimos 60 anos. E venho observado as mudanças que ocorreram no clima. As poucas chuvas que existem acontecem em poucos meses. As chuvas de inverno, por exemplo, duravam dias, fazendo com que a umidade penetrasse no solo. Agora, temos secas muito mais severas.
Federico Godínez Leal
Cientistas já estão pesquisando os impactos do muro para dezenas de espécies. Um estudo publicado em 2021 no PNAS (Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, em tradução livre) estima que o muro divide áreas onde vivem 120 mamíferos não voadores, impedindo suas migrações naturais. A mesma pesquisa também avalia que o muro pode ser um empecilho para que as espécies se adaptem às mudanças climáticas. A barreira pode contribuir para o declínio de espécies já ameaçadas, como o antílope de Sonora, endêmico da região.
Sob as mudanças climáticas, barreiras fronteiriças podem representar uma ameaça adicional se impedirem que as espécies acompanhem e ocupem seu nicho climático em transformação, mas, até onde sabemos, essa possibilidade ainda está inexplorada.
Trecho do estudo publicado em 2021

Leal, filho e amigos tentam mitigar danos no lado mexicano. Além da construção de bebedouros ao longo do deserto, a equipe tenta mapear e fotografar a região para descobrir os impactos indiretos da construção do muro, como aqueles sobre as rotas migratórias e cadeias alimentares. Ele afirma que todos os recursos partem do próprio bolso, sem apoio de governos ou instituições.
Somos eu e meu filho, basicamente. E quatro proprietários de terras que nos acompanham. É um trabalho de seis a sete pessoas. Vamos com nossos próprios veículos, que já estão ruins. Levamos os tanques de água e construímos os bebedouros, além de localizar reservas naturais de água. Enquanto eu tiver vida, vou fazer o possível. Fui diretor de áreas naturais protegidas durante 25 anos pelo governo mexicano, tenho conhecimento de projetos, planos, então toda essa experiência, além da vontade de fazer e a falta de respostas de quem deveríamos ter apoio, me faz querem continuar.
Federico Godínez Leal
O muro dos EUA
A ideia de dividir os Estados Unidos e o México é antiga. Segundo a revista Time, o governo dos Estados Unidos começou a querer coibir a migração de pessoas nas décadas de 1940 e 1950. Mas uma maior atenção para a fronteira com o México se deu após a promulgação da Lei de Imigração e Nacionalidade, pelo democrata Lyndon B. Johnson, que limitou o número de pessoas que poderiam migrar para os Estados Unidos.
Durante anos, democratas e republicanos tentaram coibir a migração para o país. O republicano Richard Nixon lançou a Operação Intercept, uma medida antidrogas, em 1969, que tinha como objetivo o fechamento das fronteiras. A iniciativa foi repetida anos mais tarde, em 1985, pelo também republicano Ronald Reagan, que aumentou a vigilância na fronteira. Já nos anos 1990, o democrata Bill Clinton construiu mais cercas na fronteira em uma "política de endurecimento", segundo a revista Time. Os ex-presidentes Barack Obama e Joe Biden também contribuíram para a construção dos muros.
O término da construção do muro é uma promessa do novo governo de Donald Trump. Durante campanha presidencial no ano passado, Trump afirmou que iria "acabar com a crise da imigração ilegal fechando a nossa fronteira e terminando o muro".
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