Pesquisa inovadora prevê risco de malária aumentar com a crise climática

O clima cada vez mais quente e seco do continente africano, consequência direta do aquecimento global, pode transformar os padrões de presença da malária no continente, de acordo com um novo modelo preditivo desenvolvido por pesquisadores da Universidade de Leeds, na Inglaterra.

A pesquisa para prever os efeitos das alterações climáticas na transmissão da doença pode ser o caminho para intervenções específicas para seu controle, afirmam os pesquisadores.

Os cientistas britânicos inovaram ao usar modelos climáticos e hidrológicos para incluir processos reais de evaporação, infiltração e fluxo através dos rios. Ou seja, analisaram o impacto das chuvas e dos fluxos de água na formação de reservatórios superficiais adequados à reprodução dos vetores (mosquitos). Até então, pesquisas sobre o tema se restringiam à análise de dados climáticos de temperatura e precipitação.

O modelo pode ser usado para calcular, por exemplo, o número de meses em um ano da suscetibilidade contínua para a transmissão da malária e, mais importante, analisar alterações para o futuro, com base em cenários climáticos diferentes - de baixas, médias e altas emissões de carbono.

O ciclo da malária

Há mais de 200 milhões de casos de malária todos os anos no mundo, segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde). A doença, que pode ser debilitante e matar, é transmitida pela picada das fêmeas de algumas espécies de mosquitos do gênero Anopheles, por sua vez contaminados por uma de cinco espécies do parasita Plasmodium. Também pode ocorrer transmissão por compartilhamento de agulhas e seringas em população de usuários de drogas por via endovenosa, mas essa forma é incomum.

Para que esse ciclo se cumpra, no entanto, são necessárias condições ideais de temperatura e água, já que, tanto vetor quanto parasita, "operam" apenas em certas faixas. É por isso que a malária acontece mais tipicamente em áreas tropicais ou ligeiramente ao norte e ao sul delas.

Modelos climáticos detectam facilmente a temperatura ideal para o desenvolvimento e a longevidade do mosquito. No entanto, a questão das águas é mais complexa: normalmente o foco está nas chuvas, e elas não representam fielmente o cenário da transmissão.

Para complicar mais as coisas, o clima do planeta não é mais o mesmo. Áreas com temperaturas até então amenas se tornaram mais quentes e mais secas - e a tendência é que essas alterações se intensifiquem. Daí a importância do novo modelo, que, pela primeira vez em escala continental, passa a considerar nas previsões também os fluxos de água pela paisagem.

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"Todo mosquito nasce em uma poça, em um pouco de água superficial, e cresce por ali", explica Mark Smith, principal autor do estudo. "Mas sabemos que, quando a chuva cai, ela não fica apenas em uma área: parte dela é absorvida pelo solo, parte é evaporada de volta para a atmosfera e perdida e outra ainda percorre a terra e eventualmente chega aos rios e atravessa a paisagem."

"Trabalhamos em lugares na África, como Tanzânia e Zâmbia, que se acreditava serem suscetíveis à malária por conta das chuvas, quando, na verdade, o motivo era um enorme rio de escala continental que inundava e criava corpos d'água - esses, sim, responsáveis pela doença. Essa informação estava simplesmente sendo perdida. O que fizemos foi representar tais processos."

E o Brasil?

Apesar de a região Amazônica ser conhecida por concentrar a maior parte da doença, por questões ambientais (elevadas temperaturas e altos índices pluviométricos) e sociais (condições precárias de habitação), é importante lembrar que outras partes do país também contam com casos - não necessariamente representados pelo modelo que inclui apenas variantes climáticas.

O novo modelo poderia ajudar a mapear melhor esses casos? "Sim, apesar de haver diferenças no parasita e na tolerância do vetor", acredita Smith. Na África, a maioria dos casos de malária é decorrente do protozoário Plasmodium falsiparum, enquanto, no Brasil, o Plasmodium vivax é mais comum. "Nós concentramos o estudo na África porque é onde ocorrem 95% dos casos e a maior parte das mortes, mas esses conjuntos de dados são globais."

Maria Anice Mureb Sallum, professora de epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da USP (Universidade de São Paulo) e uma das principais especialistas no assunto do país, concorda. "É muito importante que estudos como esse sejam feitos no Brasil, pois aqui a malária afeta especialmente as populações mais pobres e que vivem em áreas remotas da Amazônia brasileira."

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Este novo modelo permite prever áreas de risco de ocorrência de malária em diferentes cenários. A capacidade de previsão pode nos ajudar a identificar novas áreas suscetíveis à ocorrência da doença, fornecendo informações inéditas aos programas de controle da malária que é, principalmente, baseado na detecção de casos, tratamento com antimaláricos e, em algumas localidades, uso de mosquiteiros impregnados com inseticidas residuais. Maria Anice Mureb Sallum, professora de epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da USP

Vale lembrar que artigos científicos conduzidos no Brasil demonstram os impactos das atividades humanas na dinâmica de transmissão da malária na Amazônia. Está claro, por exemplo, que as alterações na vegetação da floresta, ou seja, os desmatamentos, mudam a biodiversidade dos mosquitos. Ao mesmo tempo, as "novas" condições ecológicas locais permitem que a espécie de Anopheles que atua como vetor dominante de Plasmodium se torne abundante e dominante. Essa situação é especialmente relevante em áreas onde o homem está presente e serve como fonte de sangue aos mosquitos.

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