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Viradouro é vice-campeã com enredo sobre 'santa do povo' acusada de heresia

Desfile da Viradouro - Lucas Landau/UOL
Desfile da Viradouro Imagem: Lucas Landau/UOL

Giacomo Vicenzo

De Ecoa, Em São Paulo (SP)

20/02/2023 06h00

A Unidos do Viradouro é a vice-campeã do Carnaval do Rio de Janeiro. Encerrando os desfiles cariocas, a agremiação entrou na Sapucaí para homenagear Rosa Egipcíaca, uma mulher negra escravizada que viveu possivelmente de 1719 até meados de 1765.

Biógrafo de Rosa, o antropólogo Luiz Mott a nomeia de "santa africana". Mas, apesar de ter levado uma vida de beata, de ter visões e do desejo de franciscanos que a admiravam à época, ela nunca foi canonizada.

Fato é que a vida dessa mulher ainda esconde alguns mistérios e incertezas, muito pela falta de documentação sobre ela. Por isso, como opina o antropólogo e babalorixá Rodney William, lembranças como a do desfile da Viradouro corrigem esse apagamento e trazem a possibilidade de se conhecer mais sobre sua história de vida.

"A Viradouro torna conhecida essa mulher que sintetiza a luta das escravizadas e, ao mesmo tempo, provoca um interesse maior sobre as obras que registram sua existência", aponta o antropólogo babalorixá Rodney William.

O carnavalesco da Viradouro Tarcísio Zanon e o jornalista e escritor João Gustavo Melo foram os responsáveis pela elaboração do samba-enredo e recorreram à obra do antropólogo Luiz Mott, além de percorrerem locais em que ela esteve em vida para compor a pesquisa.

Para além dos títulos canônicos, Rosa também está marcada na História por ser a primeira mulher negra a escrever um livro no Brasil: a obra "Sagrada Teologia do Amor Divino das Almas Peregrinas" narra momentos em que via o menino Jesus.

Quem foi Rosa Egipcíaca?

Rosa Egipcíaca nasceu no Golfo do Benim, mas foi sequestrada por traficantes de escravizados e trazida à força aos seis anos de idade para o Brasil- onde sofreu inúmeras violências.

Aos 14 anos foi vendida como escravizada de ganho para uma compradora da região de Mariana (MG), onde permaneceu por cerca de 15 anos. Era a única escravizada entre os 77 homens escravizados no local.

Durante esse período, precisou se prostituir para conseguir dinheiro. E, já adulta, abandonou a prostituição para se tornar beata. O motivo? Uma doença nunca identificada acometeu Rosa, que passou a sentir um peso no estômago, ter inchaços pelo corpo e sofrer desmaios - momentos em que dizia ter visões do menino Jesus enquanto desacordada.

A partir disso, o pouco dinheiro e bens materiais que conquistou decidiu doar para ajudar os mais pobres.

Também passou a frequentar assiduamente as missas e liturgias, e adota o nome de "Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz", em referência a Santa Maria Egipcíaca, nascida no Egito em 344 d.C. - que, de acordo com registros, foi prostituta antes de se tornar santa.

Em sua nova vida de devoção ao cristianismo, se aproxima do Padre Francisco Gonçalves Lopes, apelidado de "Xota-Diabos" por fazer exorcismos, praticando-o com a própria Rosa Maria Egipcíaca.

O que Rosa Egipcíaca fez?

Em 1754, no Rio de Janeiro, Rosa fundou o Recolhimento de Nossa Senhora do Parto, ao lado da Capela Nossa Senhora do Parto.

O local acolhia mulheres que tinham deixado a prostituição, ou que tinham sido abandonadas pelos maridos e filhas enviadas pelos pais por desobediência, sendo pelo menos metade das residentes negras. Foram quase 60 anos em atividade.

Na capela, Rosa era intitulada afetuosamente de "Flor do Rio de Janeiro". Era respeitada pelos sacerdotes e adorada de joelhos pelos fiéis.

Costumava promover cerimônias religiosas um tanto quanto diferente das vistas nas igrejas na época: Pitando cachimbo, celebrava cultos com nítido sincretismo afro-católico, que lembravam giras dos terreiros de candomblé e umbanda, com incorporações e contato com entidades espirituais.

Rosa Maria Egipcíaca profetizou que o Rio de Janeiro seria destruído como aconteceu em 1755 em Lisboa, que foi devastada por uma inundação após passar por um terremoto.

Apesar de ter convencido famílias a se refugiarem em seu recolhimento com a promessa de salvação apenas dessa forma, o fenômeno não se concretizou - e gerou revolta por parte de alguns de seus seguidores.

Primeira mulher negra a escrever livro no Brasil e inquisição

Logo ao retornar ao Rio de Janeiro, durante o período que fundava o recolhimento, Rosa afirmou ter sido tomada por uma visão de Nossa Senhora Aparecida, em que a santa a orientava a aprender a ler e a escrever.

Rosa de fato conseguiu domar a escrita e a leitura, e como fruto do aprendizado, escreveu a obra "Sagrada Teologia do Amor Divino das Almas Peregrinas", livro de 250 páginas, em que narrava ser visitada pelo menino Jesus, que penteava seus cabelos e era alimentado por ela com seu próprio leite materno.

Após a profecia de dilúvio no Rio de Janeiro feita por Rosa não se cumprir, correram boatos de que ela e o padre "Xota-Diabos" seriam denunciados ao bispo e presos. Com medo de serem acusados de heresia, queimaram quase que por completo a obra escrita por Rosa.

Mas não teve jeito. Em 1763, a Igreja Católica a acusa de ser herege e falsa santa. Por isso, foi presa e enviada para a prisão do Santo Ofício, em Lisboa.

Nos primeiros interrogatórios, o padre disse ter sido enganado por Rosa, pede perdão e tem como punição a perda do direito de confessar e exorcizar, além do exílio de cinco anos.

Do outro lado, Rosa mantém a versão de que todas as suas visões foram reais, mas os documentos do processo encerram em 1765, de acordo com a pesquisa de Luiz Mott, sem identificação da pena aplicada à Rosa, tornando o fim de sua vida incerto.

Para o antropólogo Rodney William, apesar do vasto conteúdo, o apagamento da história de Rosa Maria Egipcíaca no Brasil está diretamente ligado ao racismo.

"Muitas santas e santos católicos brancos tiveram essa proximidade com a vida mundana, mas não passaram pelo mesmo apagamento. Ter sido escravizada, ter sido obrigada a se prostituir ou acusada de heresia seriam fatos usados para ratificar a santidade de Rosa Egipcíaca se ela fosse branca. Lembremos de Maria Madalena", comenta o antropólogo.