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'Virei mãe de jaguatiricas': veterano de guerra cura traumas na Amazônia

Harry Turner e Keanu, jaguatirica órfão criado por ele até ser reintroduzido na mata - Trevor Frost/Prime Video
Harry Turner e Keanu, jaguatirica órfão criado por ele até ser reintroduzido na mata
Imagem: Trevor Frost/Prime Video

De Ecoa, em São Paulo (SP)

09/02/2023 04h00

Aos 20 anos, Harry Turner já era veterano da Guerra do Afeganistão e decidiu que iria à Amazônia peruana para morrer.

O britânico pisou pela primeira vez na maior floresta tropical do mundo em 2014, severamente deprimido e com estresse pós-traumático. Havia tentado o suicídio na sua Inglaterra natal e tinha sido dispensado do exército por razões médicas. "Eu fui para o lugar mais profundo da floresta para escapar, fugir. Foi assim que minha jornada começou", disse a Ecoa.

Mas na Amazônia sua vida tomou outro rumo. Envolvido em projetos de conservação ambiental, Turner se tornou "mãe" de dois filhotes órfãos de jaguatirica: Khan e Keanu. Passou quase dois anos ensinando os felinos a sobreviver até reintroduzi-los na floresta.

Mesmo com todas as dificuldades, a tarefa deu a ele uma razão para continuar vivo. Em 2022, criou a Emerald Arch, ONG de conservação ambiental baseada nos Estados Unidos, e protagonizou o documentário "Wildcat", lançado pelo streaming Prime Video.

"Encontrei paz e amor quando estava lá, tudo o que quero fazer é retribuir. A floresta me salvou, agora quero salvar a floresta", disse.

Criando um filho para a floresta

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Harry Turner e Keanu
Imagem: Trevor Frost/Prime Video

Khan e Keanu perderam suas mães por conta da extração ilegal de madeira, uma das principais ameaças naquela região. A derrubada de árvores leva à morte de animais e deixa suas crias órfãs. No caso da jaguatirica, os filhotes dependem da mãe por muitos meses e aprendem com ela a caçar e se proteger.

Além de estarem privados desses cuidados, os dois filhotinhos que chegaram às mãos de Harry estavam doentes e desnutridos. Ele já vinha resgatando animais na Amazônia peruana como voluntário da ONG Hoja Nueva, ao lado da bióloga e fundadora Samantha Zwicker. Mas seria a primeira vez que fariam a reabilitação e reintrodução de filhotes de jaguatirica.

Para isso, Zwicker fez muitas pesquisas e estruturou um plano. Além de manter o filhote alimentado e hidratado, a prioridade inicial era garantir que se sentisse seguro.

Deixei eles dormirem no meu ombro para que sentissem minha respiração e meu batimento cardíaco como fariam com a mãe. Se o animal não se sentir seguro, ele fica estressado e o estresse pode levar à morte. Harry Turner, veterano da Guerra do Afeganistão.

Quando os filhotes passaram a se mostrar mais relaxados perto de Harry, começou o trabalho de andar com eles pela floresta, ensinando-os a caçar, a identificar presas e perigos.

Ele exemplifica: "Se eles estivessem brincando com uma cobra muito venenosa, eu teria que separá-los e repreendê-los de alguma forma, como a mãe deles faria, geralmente com um tapinha na cabeça".

Como jaguatiricas normalmente caçam à noite, Harry passou muitas madrugadas com os felinos na floresta, sem dormir. O objetivo final da reabilitação é que, depois de cerca de um ano e três meses, já adultos, eles comecem a passar cada vez mais tempo sozinhos na floresta, até assumirem totalmente o comportamento de um felino selvagem.

Eu precisei me tornar uma mãe. Eu tinha que estar lá para eles, treiná-los e ensiná-los a ser selvagens. Enquanto fazia isso, senti que tinha um propósito. Isso me deu motivo para continuar acordando de manhã e insistir naquilo, porque eles precisavam de mim
Harry Turner, veterano da Guerra do Afeganistão

'Quando estou na natureza é quando estou mais feliz'

2 - Trevor Frost/Prime Video - Trevor Frost/Prime Video
Harry Turner tatuou rosto de Khan no pescoço após a morte do filhote
Imagem: Trevor Frost/Prime Video

Harry descreve o processo de treinar os filhotes como cheio de tentativa e erro, aprendizado e problemas. Somada às dificuldades que ele já enfrentava, a empreitada se mostrou física e emocionalmente extenuante: enquanto cumpria sua missão, o cansaço e a saudade da família apertaram e ele adoeceu.

Quando Khan tinha nove meses veio o golpe mais duro: o primeiro filhote de quem se dedicou a cuidar foi atingido por um tiro de uma armadilha de caça na pata dianteira e não sobreviveu. A perda fez com que Harry caísse novamente em uma depressão profunda e passasse por episódios de automutilação.

Um ano depois, porém, veio Keanu. Com uma tatuagem de Khan cobrindo seu pescoço, ainda se recuperando do luto, Harry recomeçou a rotina de cuidados e ensinamentos com o novo filhote, dessa vez numa área mais remota e segura.

"Eu não tinha coisas básicas como água quente. Eu fiquei doente, cansado, estava fazendo esse projeto exaustivo que me fazia ficar acordado o tempo todo. Mas quando estou na natureza é que estou mais feliz. As pessoas precisam perceber que, se eliminarmos a natureza e os lugares naturais, nossa saúde mental vai se deteriorar", disse.

Harry conseguiu concluir a reintrodução de Keanu no fim de 2019. O animal foi visto por uma câmera instalada pela equipe na floresta seis meses após sua soltura, com aparência saudável.

Segundo o documentário "Wildcat", a equipe da Hoja Nueva já resgatou mais de 120 animais, entre eles 13 felinos selvagens, e protege cerca de 3 mil hectares de floresta.

Harry Turner deixou o Peru e passou um período com a família no Reino Unido. Voltou à América Latina menos de um ano depois para ser voluntário em um novo projeto de conservação voltado para répteis e anfíbios no Equador.

Em 2022, ele fundou com sua noiva, Lexie Gray, a ONG Emerald Arch - "arco esmeralda", em tradução livre, uma referência ao verde da floresta e à ponte que a organização pretende construir entre conservação, educação e saúde mental. Eles ainda estão arrecadando fundos para seus projetos, mas pretendem construir um retiro na floresta para pessoas com estresse pós-traumático, com foco especial em quem esteve na guerra.

De espectador a personagem

4 - Prime Video/Divulgação - Prime Video/Divulgação
Samantha Zwicker verifica equipamento de monitoramento na floresta
Imagem: Prime Video/Divulgação

Harry nasceu em Portsmouth, no sul da Inglaterra, mas passou a maior parte da vida em Essex, a leste de Londres. Quando era criança, adorava assistir a documentários sobre vida selvagem. "Meu avô gravava em VHS documentários sobre diferentes tipos de répteis e anfíbios e eu ficava animado para ir lá e assistir com ele", conta.

A família sempre teve pets, e quando Harry chegou a uma certa idade, seus pais disseram que ele poderia escolher um animal doméstico para criar. O menino queria uma cobra, mas eles lhe deram um hamster. Amante dos animais, ele ficou feliz mesmo assim, mas batizou o roedor de "Snakey" [algo como 'cobrinha' em uma tradução livre]. À medida que ficou mais velho, passou a resgatar bichos na cidade e a ajudá-los a conseguir um lar.

Aos 18, a razão principal para entrar para o exército foi que precisava de dinheiro. Seu pai era da marinha e aquele pareceu um caminho fácil, mas essa visão caiu por terra quando foi enviado ao Afeganistão e viu crianças morrerem na sua frente.

"Era um lugar muito difícil, mas se eu não tivesse ido para o Afeganistão provavelmente nunca teria feito os projetos com Khan e Keanu. Acredito que tudo acontece por uma razão, mesmo que seja ruim ou triste", afirmou.

Quando começou a trabalhar na reabilitação de Khan, ele ficou maravilhado e começou a registrar despretensiosamente alguns momentos: "Eu queria lembrar daquilo, queria criar memórias, então gravava e tirava fotos".

Depois da morte trágica do filhote, Harry conheceu o cineasta Trevor Frost. "Eu estava no Peru em um projeto fotográfico e um amigo meu me apresentou Harry no saguão de um hotelzinho", disse a Ecoa. "Fiquei imediatamente impressionado com a personalidade dele. Ele tem uma energia magnética e é extremamente carismático. Mas ele também estava sofrendo muito naquela época".

O cineasta propôs usar as imagens feitas em um pequeno documentário sobre Khan. Com a chegada de Keanu e a possibilidade de captar mais material, porém, o projeto tomou uma proporção maior, resultando no longa "Wildcat".

"As filmagens que Harry e Samantha fizeram dos seus primeiros resgates eram muito instigantes. Quando vi, sabia que dariam um filme maravilhoso", disse Frost. Foram dois anos filmando na Amazônia peruana, quatro no total trabalhando no filme. "A resposta tem sido incrível, recebemos muitas mensagens e e-mails maravilhosos sobre como o filme tem tocado as pessoas".

Procure ajuda

Caso você tenha pensamentos suicidas ou conheça alguém que precisa de auxílio, o CVV (www.cvv.org.br) e os Caps (Centros de Atenção Psicossocial) da sua cidade oferecem ajuda especializada. O CVV funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados) pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil.