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Camisa Verde e Branco ensina português e matemática em cursinho grátis

Aula inaugural do Cursinho do Trevo, da escola de samba Camisa Verde e Branco, em março de 2022 - Marcus Oliveira/Cursinho do Trevo
Aula inaugural do Cursinho do Trevo, da escola de samba Camisa Verde e Branco, em março de 2022 Imagem: Marcus Oliveira/Cursinho do Trevo

Adriana Terra

Colaboração para Ecoa, de São Paulo (SP)

12/07/2022 06h00

É uma manhã de sábado no bairro paulistano da Barra Funda, em São Paulo (SP), e, dentro da construção de fachada verde e branco, um grupo de jovens na faixa dos 18 anos, sentado em roda, ouve o professor de redação. "O quilombo sempre foi uma experiência coletiva de liberdade. Que experiências se relacionam com o quilombo hoje? Já falamos da escola de samba?", pergunta Juca Guimarães, 49, conversando com os alunos.

O cenário é a quadra do Camisa Verde e Branco, uma das mais antigas agremiações da cidade, fundada como escola de samba no começo da década de 1950, mas com origens como cordão carnavalesco em 1914 nessa região. No mesmo dia, o professor de geografia Pedro Silva, 33, faz outras ligações entre o conteúdo da aula e o local onde estão.

"Quando vocês forem estudar solo, geralmente vão falar sobre produção agrícola, mas é muito maior que isso. Tem a questão de a gente procurar se territorializar, essa é a busca de todos os povos marginalizados do Brasil: o periférico, o negro, o indígena. Então, do ponto de vista estrutural, este lugar em que estamos pode ser limitado, mas ele é histórico", diz.

Pedro atravessa boa parte da cidade para estar ali lecionando. Do extremo sul, ficou sabendo do Cursinho do Trevo via um grupo de geógrafos negros ao qual pertence e, mesmo não sendo nem da Barra Funda e nem do samba, quis estar junto. "Na verdade, eu sou punk", diz ele. Mas o punk, assim como o samba, ajuda-o a ler o mundo ao seu redor. A possibilidade de construir uma educação popular o levou até ali.

Essa mesma perspectiva guiou outros professores e coordenadores até a iniciativa que começou a ser idealizada em 2019 por um grupo de amigos frequentadores da escola. De uma parceria com a Uneafro, que fornece o material didático e dá suporte em ações — ponte iniciada por um dos fundadores do cursinho, o jornalista Pedro Borges, 30 -, o projeto foi desenhado, pensando sempre em educação a partir da escola em que já estão. Ao lado de Pedro, nessa fase inicial estavam a advogada Julia Paulo Pereira, 27, e a publicitária Giulia Cuppari, 26, articulando com a comunidade da qual fazem parte.

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Alunos na aula inaugural do cursinho
Imagem: Marcus Oliveira/Cursinho do Trevo

Soma de saberes

Com o direcionamento de um ensino antirracista e em diálogo constante com a região, o grupo daquele sábado, que foi crescendo, entrevistou professores e organizou formações como a que contava a história do Camisa Verde e Branco, convidando membros da comunidade a falar.

Os docentes selecionados foram também chamados a gravar um vídeo relacionando sua disciplina com o samba e o carnaval, uma conexão que continua a ser explorada nas aulas dessa primeira turma que só pôde se reunir em 2022, após dois anos de pandemia.

Danilo Chalita, 31, é professor de matemática e mestre de bateria de outra escola, com trânsito longo por esse universo.

"Eu preparei a princípio uma aula teste de física falando de ondulatória, do ecoar do tambor. Dei uma aula no dia da Batalha dos Guararapes e no final botei o samba da Vila Isabel de 1972 ["Onde o Brasil Aprendeu a Liberdade" fala sobre o confronto militar do século 17]. Eu já enxergo o samba com esse viés da educação, isso é uma coisa minha desde sempre, por isso senti o dever de estar aqui", diz ele.

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Mestre Gabi, mestre-sala lendário do Camisa Verde e Branco, conversa com alunos do cursinho
Imagem: Marcus Oliveira/Cursinho do Trevo

Os organizadores do cursinho contam que a Velha Guarda da agremiação é grande apoiadora do projeto, e lembram o dia em que Mestre Gabi, como é conhecido Gabriel de Souza Martins, 74, lendário mestre-sala, conversou com os estudantes.

"Ele contou que era o único aluno preto do curso técnico de projetista, que queria ser arquiteto mas não tinha dinheiro, e foi o talvez primeiro aluno negro do que se tornaria a ETEC Martin Luther King", diz a coordenadora Narubia Gonçalves, 33. Também se recordam do vídeo gravado pelo baluarte Seu Dadinho, falecido em 2021. "A escola de samba é uma cultura", reforçou ele na ocasião.

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Mestre Gabi em conversa com alunos do Cursinho do Trevo
Imagem: Marcus Oliveira/Cursinho do Trevo

Esse compartilhamento de histórias é valorizado pelos coordenadores, buscando articular saberes e coabitar um lugar que, de janeiro a janeiro, como diz o hino da escola, tem vida.

"A gente quer que esses jovens convivam com a comunidade e levem isso pra universidade", diz Pedro Henrique de Alcantara e Silva, 30. "Os alunos daqui não serão universitários no samba, mas sambistas na universidade", resume Narubia.

'Esperançar' outra educação

Mayara Miquelino de Souza Franco, 17, é uma das alunas do cursinho. Sua relação com a quadra da escola, no entanto, começa antes. Frequentadora da agremiação com sua família, ela lembra de uma apresentação que fez por ali com o bloco do qual faz parte, o Inajar de Souza, da zona norte.

"O bloco é afilhado do Camisa e foi muito especial", conta. No terceiro ano do Ensino Médio e cursando ensino técnico em Nutrição e Dietética, ela costuma levar as discussões das aulas para dentro de casa, conversando muito com seu pai.

Já Pedro Luiz Paulino da Cruz, 20, é ritmista do Camisa Verde e Branco, escola do coração de sua família materna - sua bisavó, conhecida como Tia Nair, foi uma baiana notória ali. Entre 2020 e 2021, fez o cursinho da Uneafro online, mas quando ficou sabendo que a agremiação teria cursinho próprio, se animou.

Cursinho do Trevo - Adriana Terra/UOL - Adriana Terra/UOL
Da esquerda para a direita, Narubia Gonçalves, Larissa Tavares, Pedro Henrique, Julia Paulo Pereira e Giulia Cuppari, coordenadores do cursinho | Adriana Terra
Imagem: Adriana Terra/UOL

"É um lugar onde já me sinto à vontade, e eu consegui levar mais quatro ou cinco pessoas comigo: meu primo, amigos da bateria", diz ele.

Uma parte dos alunos é da comunidade da escola, uma parte de outras agremiações e, nessa turma inicial de cerca de 40 jovens, há também alunos de fora desse universo.

A ideia inicial da organização era focar em integrantes da agremiação da Barra Funda, mas a mistura que aconteceu naturalmente vem sendo vista como benéfica, até mesmo para apresentar a riqueza de uma escola de samba a quem nunca havia pisado em uma quadra.

"Porque a gente está em um espaço que é diferente de tudo que está na sociedade: aqui você tem uma maioria preta em todos os cargos, você tem a valorização dos mais velhos, tem o espaço da cultura sem ser elitizado", enxerga a coordenadora Larissa Tavares dos Santos, 32, que articula a parte pedagógica do cursinho.

Mariana de Oliveira Gomes, 31, é professora de sociologia do projeto e também toca na bateria da agremiação. Ela vê o cursinho como a possibilidade de sonhar com outra educação.

"A escola de samba já é uma escola, em todas as dimensões. E acho que o cursinho se coloca como ponte entre esse saber e o vestibular, esse espaço violento que exclui, que valoriza muito conteúdos focados apenas na Europa. O cursinho é mais um ponto de comunicação: você pode acreditar no que sabe, pode chegar em outros lugares e pode lutar contra essa estrutura que diz que isso não é um saber", diz ela.

"Esse espaço também traz a esperança de 'esperançar', de acreditar na educação enquanto troca, crescimento mútuo, direito inalienável das pessoas de terem acesso a pluralidade dos conhecimentos. Falar de escola é falar disso"

Mariana de Oliveira Gomes, professora de sociologia