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Doces de PANCs, como jenipapo e aroeira, geram renda e protegem florestas

A etnobióloga Patrícia Medeiros, na cerimônia realizada em Paris na qual recebeu o prêmio International Rising Talents, da L"Oreal-Unesco - Divulgação
A etnobióloga Patrícia Medeiros, na cerimônia realizada em Paris na qual recebeu o prêmio International Rising Talents, da L'Oreal-Unesco
Imagem: Divulgação

Juliana Domingos de Lima

De Ecoa, em São Paulo

11/07/2022 06h00

"Quando eu comecei a trabalhar com etnobiologia, me encantou muito conhecer essas comunidades, ver que as pessoas têm conhecimentos tão minuciosos sobre a natureza, que muitas vezes sequer a ciência detém e que são transmitidos para as outras gerações. Eu fiquei apaixonada por esse universo. O que mais me motiva é que meus estudos deem argumentos para valorizar a atividade extrativista. Não de uma comunidade só, embora isso seja importante, mas para que as pessoas olhem para essas comunidades extrativistas com outros olhos e vejam que elas podem ser chave para nos fornecer alimentos em cenários de incertezas, em cenários de futuro."
Patrícia Medeiros, etnobióloga

Depois de muita expectativa, Patrícia Medeiros finalmente pôde ir a Paris no fim de junho para receber o prêmio International Rising Talents, com o qual foi a única cientista brasileira agraciada nas edições de 2020 e 2022. A viagem havia sido adiada devido à pandemia de covid-19.

A premiação promovida pelo programa da L'Oreal e Unesco para mulheres na ciência seleciona anualmente 15 pesquisadoras promissoras de todo o mundo, ainda em início de carreira, reconhecendo sua excelência e buscando garantir o desenvolvimento de seu potencial. Medeiros tem 35 anos e já é professora universitária há onze.

Desde 2013, ela pesquisa plantas alimentícias — também conhecidas como PANCs, sigla para plantas alimentícias não convencionais — com o objetivo principal de aumentar a renda de comunidades extrativistas com a popularização e venda principalmente de espécimes silvestres, que ocorrem de maneira natural em locais como florestas ou até beiras de estrada e são pouco conhecidos nas cidades. Seu campo de atuação, a etnobiologia, estuda a relação entre pessoas e natureza.

Apesar do adiamento da cerimônia, a divulgação do prêmio em 2020 já teve efeitos concretos para a pesquisa da etnobióloga. A bolsa de 15 mil euros (cerca de R$ 83 mil) bancou seus estudos durante esses dois anos, o que ressalta ter sido importante no contexto da falta de financiamento enfrentada por cientistas brasileiros. Além disso, o trabalho ganhou projeção internacional, angariando apoio para o estudo das PANCs em prol de populações extrativistas.

Em Paris, ao longo de pouco mais de uma semana, a recifense pôde ter contato com cientistas mulheres de áreas e origens diversas, além de ter participado de um curso intensivo de liderança e discussões sobre questões de gênero na ciência. Os desafios comuns enfrentados por colegas de diferentes países por serem mulheres chamaram atenção da pesquisadora.

"Quando era criança, via aqueles desenhos dos cientistas excêntricos, geralmente homens brancos mais velhos, aquela coisa bem recortada como se só esse tipo de pessoa específica fosse cientista. Então eu olhava para mim assim [e dizia] 'não, jamais vou ser isso'", disse a Ecoa.

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Cientistas premiadas pela L'Oreal-Unesco em cerimônia realizada em junho de 2022
Imagem: Caslot Jean-Charles/Divulgação

Parceria com comunidades

Ao lado do professor Rafael Silva, Medeiros coordena a equipe de pesquisadores do Laboratório de Ecologia, Conservação e Evolução (Leceb) da Universidade Federal de Alagoas.

A pesquisa sobre plantas alimentícias junto a extrativistas começou no assentamento Dom Hélder Câmara, que fica no município de Murici (AL), próximo a Maceió. No assentamento, que é referência no estado em transição agroecológica, os pesquisadores obtiveram alguns primeiros resultados.

Em seguida, o grupo coordenado por Medeiros passou a trabalhar com comunidades do município de Piaçabuçu, no litoral sul de Alagoas. Ali, os extrativistas estão organizados na Associação Aroeira e alguns de seus membros se tornaram também pesquisadores do Leceb, dando um protagonismo maior às comunidades nos estudos que as beneficiam.

Segundo a presidente da associação e agroextrativista Rita Ferreira, o trabalho dos pesquisadores já tem trazido resultados importantes para as comunidades de Piaçabuçu, como a ampliação da visibilidade dos produtos e do conhecimento dos extrativistas sobre as plantas com que trabalham. "Isso é muito importante porque quando a gente conhece, a gente preserva", disse Rita a Ecoa.

O trabalho de Medeiros e sua equipe parte do conhecimento tradicional dos extrativistas. Ele se inicia a partir de entrevistas, que têm o objetivo de identificar as plantas alimentícias conhecidas pela população local e as que possuem maior potencial para o propósito da pesquisa, levando em conta aspectos nutricionais, ambientais e sociais.

Em Piaçabuçu, o levantamento chegou a um número inicial de 18 plantas, das quais o cambuí, o jenipapo, a aroeira e o araçá tiveram a maior "pontuação" na pesquisa e se tornaram o foco dos extrativistas para a produção de doces, geleias e compotas. Rita Ferreira conta que esses produtos, com maior valor agregado que os frutos in natura, estão começando a trazer resultado de vendas para a comunidade.

trabalho de campo - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Pesquisadora do Leceb e extrativistas em campo
Imagem: Arquivo pessoal

Outra etapa importante da pesquisa desenvolvida pelo Leceb são os estudos ecológicos realizados com as espécies identificadas, para verificar se é possível haver um manejo sustentável. Se a extração for diminuir a população da planta, colocando a espécie em risco, a possibilidade de popularizá-la é descartada, segundo Medeiros.

Mas a pesquisadora enfatiza que, em muitos casos, o manejo sustentável é possível, principalmente com espécies frutíferas. Para os extrativistas de Piaçabuçu, houve um aprendizado em relação à conservação: eles passaram a deixar nas árvores uma quantidade de frutos suficiente para alimentar a fauna e disseminar sementes, e a produzir e plantar mudas.

"Às vezes a gente chegava e tirava tudo. Hoje a gente tem bastante agricultores que já conseguem produzir mudas dessas plantas que antes a gente só coletava o fruto", disse a presidente da Associação Aroeira.

Mudanças climáticas: 'diversificar é urgente'

Medeiros - Caslot Jean-Charles/Divulgação - Caslot Jean-Charles/Divulgação
Cientista brasileira Patrícia Medeiros recebe prêmio do programa da L?Oreal e Unesco para mulheres na ciência
Imagem: Caslot Jean-Charles/Divulgação

Para alcançar o objetivo final de gerar informações que auxiliem as comunidades extrativistas a divulgar e vender os seus produtos, Patricia Medeiros e sua equipe ainda testam hipóteses sobre os potenciais consumidores.

Além de apontar em quais plantas os extrativistas podem apostar mais, seja pelo sabor, disponibilidade ou valor calórico, os pesquisadores indicam o perfil socioeconômico mais propenso a consumir esse tipo de produto e a melhor maneira de publicizá-lo para atrair essas pessoas.

Essas estratégias não beneficiam somente as comunidades extrativistas, mas são fundamentais para diversificar a dieta humana, que ao longo do tempo - num processo intensificado pela urbanização e pelas grandes plantações - passou a se resumir a uma pequena variedade de espécies.

Medeiros enfatiza que essa diversificação é urgente num contexto de crise climática e insegurança alimentar crescente, em que muitos dos alimentos que consumimos sofrerão escassez em função do clima.

"Quanto mais a gente diversifica os sistemas alimentares, maior a chance de manter o abastecimento [de comida] quando a crise chegar no nível ainda mais crítico. Por isso é super importante pensar não só em plantas do extrativismo, mas em cultivos menos populares que se adequem às novas realidades do ponto de vista climático. Fazer isso é projetar segurança alimentar para o presente e para o futuro."
Patrícia Medeiros, etnobióloga