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'Foi tão rápida a sua partida': Programa do SUS oferece apoio a enlutados

O Proalu, Programa de Acolhimento ao Luto do Departamento de Psiquiatria da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) já realizou mais de 2 mil atendimentos a pessoas em luto - iStock
O Proalu, Programa de Acolhimento ao Luto do Departamento de Psiquiatria da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) já realizou mais de 2 mil atendimentos a pessoas em luto Imagem: iStock

Danilo Casaletti

Da Republica.org

24/06/2022 06h00

Tatiana Soares, 39 anos, perdeu a mãe para a covid-19 em abril de 2021. Filha única, de pais separados, nunca quis sair de perto dela. Dividiam o mesmo quintal. O choque com a perda foi grande. "Foi tão rápida a sua partida, e muito dolorida, pois era uma pessoa saudável que do nada pegou essa doença, internou, intubou e foi embora", relata.

Como em outras tantas histórias marcadas pela pandemia, Tatiana não teve a chance de ao menos se despedir da mãe. "Não me ligaram antes de intubá-la, enfim, não a vi mais depois de sua internação, somente o caixão, fechado. Depois de sua partida, mais uma surpresa, descobri que estava grávida."

Sem saber lidar com a situação, procurou ajuda. Chegou ao Proalu, Programa de Acolhimento ao Luto do Departamento de Psiquiatria da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) que, como o nome indica, presta apoio a enlutados. E, além disso, promove a educação relacionada ao luto, tanto para a comunidade quanto para os profissionais de saúde.

"O programa me ajudou muito. No início não conseguia nem entrar na casa dela. No decorrer das sessões, meu trabalho mudou para home office. Adivinha onde instalei meu escritório? Na sala da minha mãe, e também fiz umas sessões de lá. Para mim, foi um avanço. Me ajudou a compreender que eu não tive culpa da sua partida, que a nossa história não se resumia aos últimos acontecimentos", conta Tatiana.

Por histórias como essa é que a psicóloga e professora Samantha Mucci, chefe da disciplina de Psicoterapia e Psicologia Médica da Escola Paulista de Medicina, e coordenadora do Proalu, fez um pedido ao conversar com a reportagem: "Divulguem o Proalu".

O programa, que atende pelo SUS, no Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental (CAISM) da Vila Mariana, na zona sul de São Paulo, tomou forma em 2020, durante a pandemia. As psicólogas que atuam na UTI e no pronto-socorro do Hospital São Paulo levaram a demanda de um serviço especializado em luto. O sentimento para os enlutados pela covid, os profissionais notaram, era diferente.

Sentimento de culpa

"Com a covid, e já há estudos sobre isso, há um sentimento de culpa intenso em quem fica ou sobrevive. Há questionamentos como 'será que fui eu que passei para ele (a)?' ou 'Eu não estava junto com ele no momento final'. Temos que ajudar as pessoas a lidarem com isso. A humanidade passa por um luto coletivo", diz a professora.

O projeto de acolhimento já estava na gaveta há certo tempo. A professora sempre tratou do tema em suas aulas na faculdade. O Proalu, então, foi estruturado, para adultos, em dois encontros de triagens e quatro de acolhimento, chamado de Acolhimento Breve ao Luto.

Para o trabalho, foram treinados residentes de psicologia e da psiquiatria. Até agora, no total, 457 adultos enlutados já foram assistidos em 2.742 atendimentos realizados. A equipe, que no começo era de 25 voluntários, hoje chega a 45 pessoas. Até o momento, o programa não recebeu nenhuma verba extra por parte do governo federal.

Colaboração do setor privado

Samantha - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A psicóloga e professora Samantha Mucci, chefe da disciplina de Psicoterapia e Psicologia Médica da Escola Paulista de Medicina, e coordenadora do Proalu
Imagem: Arquivo pessoal

Samantha, que se define como uma idealista, fez tudo, como se diz na linguagem popular, "na raça". Ela aposta na expansão do projeto e, para isso, conta com a ajuda do setor privado. Essa colaboração já vem acontecendo. Chamada por uma empresa de tecidos para falar sobre luto com os funcionários, a professora trocou seu trabalho por uma ajuda para colocar no ar o site do Proalu e comprar material para a caixa lúdica —uma ferramenta da psicologia e da pedagogia.

Além dos enlutados pela covid, o Proalu recebe enlutados por suicídio e por câncer, os quais Samantha liga também à pandemia em função do aumento dos transtornos mentais e da demora na busca por diagnósticos.

Foi o caso de Ana Rosa T. Stoppa. A mãe dela, após uma semana de internação, sucumbiu a um câncer na bexiga. A filha dela, de cinco anos, sofreu com a ausência da avó. Em um grupo de WhatsApp da escola da menina, ela soube do Proalu e a filha já finalizou seu tratamento.

Ana Rosa revela como ambas foram ajudadas. "Minha filha está conseguindo falar mais sobre o assunto e compreendendo melhor a ausência da tão amada avó. Eu, que nem havia me inscrito no programa, tive uma grata surpresa ao encontrar uma terapeuta maravilhosa que me ajudou a pensar sobre algo que eu escondia até de mim mesma."

Além de pessoas carentes, de grande vulnerabilidade social, o programa, segundo a professora, recebe pacientes que poderiam pagar, mas que procuram o projeto por confiança, já que o Proalu tem se tornado referência.

Foco no atendimento de crianças e adolescentes

Agora, o foco do Proalu é intensificar o atendimento de crianças e adolescentes, etapa que começou no ano passado, quando Samantha percebeu que não havia nada especializado nessa faixa etária. "Tinha de ser pelo SUS", afirma.

Para eles, o programa é um pouco diferente. São dois encontros de triagem e outros 16 em psicoterapia de luto. Os cuidadores participam de grupos de acolhimento e recebem orientação sobre como conversar com essas crianças e adolescentes sobre perdas.

"Há muitas perdas secundárias ao luto concreto. Morre uma pessoa da família, que às vezes é o provedor ou provedora principal. Isso gera um impacto social muito grande na criança. Ela, além de perder o pai, a mãe ou cuidador, teve que ir morar na casa da avó, mudar de cidade, de escola, perder os amigos", explica.

Até o momento, 22 famílias, crianças e adolescentes enlutados e seus cuidadores sobreviventes, já receberam atendimento. As inscrições estão abertas pelo e-mail pequenosenlutados@proalu.com.br

Plataforma online

Com demandas vindas das mais diversas partes do país, a grande preocupação de Samantha é conseguir atender todas as crianças e adolescentes que procuram o Proalu. Por não querer deixar ninguém para trás, ela decidiu que o atendimento de crianças e adolescentes, além do ambulatório da Vila Mariana, será online. Com adultos, esse trabalho a distância já é feito por plataformas disponíveis no mercado.

Para os mais novos, entretanto, o objetivo do programa é reproduzir um ambiente tão hospitaleiro quanto o que a equipe consegue oferecer no CAISM da Vila Mariana. A plataforma já está em desenvolvimento e deverá entrar em operação até setembro. Ela está sendo preparada pela Wire EdTech Solutions, que trabalha com projetos educacionais para corporações e escolas.

O ambiente virtual exclusivo terá custo zero para o Proalu —é uma doação da empresa para o projeto. A expectativa é que os atendimentos possam ser triplicados com a ajuda da tecnologia.

Ambiente lúdico

"Uma das alternativas, e ainda estamos em busca de outro parceiro, é oferecer uma plataforma 'gamificada' (sem qualquer aspecto competitivo), na qual haverá avatares, personagens virtuais que podem ser customizados. Com esse aspecto mais lúdico, a criança poderá acessar a plataforma e percorrer o conteúdo do site", diz Renato de Amorim Gomes, da Wire.

Nesse mesmo ambiente, além de acessar os materiais disponíveis, o paciente terá a conexão para conversar com os psicólogos e psiquiatras que atendem no Proalu. Além da plataforma, a Wire está redesenhando a marca do Proalu e organizando as cartilhas disponíveis no site.

Na empresa, que tem 20 colaboradores, sete pessoas se ofereceram para participar do projeto —todos se voluntariaram, e não há qualquer pagamento a mais pelo tempo que elas dedicam. De esforço, Gomes acredita que o projeto, se fosse cobrado, ficaria em torno de R$ 20 mil.

"Todos os anos elegemos um ou mais projetos para apoiar, sempre condizentes com a educação. Isso nos faz bem enquanto pessoas. É fazer algo além do lucro", explica Gomes.

Educacional

O Proalu tem um braço que a professora Samantha chama de psicoeducacional. No site do programa há uma listagem com livros para adultos e crianças, filmes, músicas, podcasts e outras publicações que abordam o tema.

Entre os conteúdos sugeridos, está, por exemplo, a canção "Não Tenho Medo da Morte", de Gilberto Gil, na qual o compositor baiano afirma: "Não tenho medo da morte/ Mas medo de morrer, sim/ A morte e depois de mim/ Mas quem vai morrer sou eu/ O derradeiro ato meu/ E eu terei de estar presente".

Do cinema, a lista destaca produções como "Ghost", que aborda a morte de uma maneira mais espiritual e romântica, 'Marley e Eu", sobre amizade e despedida entre uma família e seu animal de estimação, e o brasileiro "Elena", no qual o suicídio é debatido em seus diferentes aspectos.

Tipos de luto

No Instagram do Proalu há dezenas de posts que esclarecem questões sobre o luto em suas mais variadas formas —e quem navegar pelo conteúdo terá a percepção de que um tema muitas vezes tão negligenciado apresenta inúmeros aspectos a serem considerados.

Como, por exemplo, o chamado Luto Antecipatório, aquele que se inicia quando um indivíduo recebe um diagnóstico médico que trará mudanças significativas em sua vida, como a morte iminente.

Outro tipo de luto abordado é aquele que tem relação com pessoas públicas, quando o sentimento pode tomar um aspecto mais coletivo. O exemplo citado pelo Proalu é o do humorista Paulo Gustavo, morto em maio de 2021, vítima da covid. Naquela altura, alerta o post, sete em cada 10 brasileiros conheciam alguém que tivesse morrido de covid. E, assim, a morte do ator trouxe um sentimento familiar.

"No caso do Paulo Gustavo, tanto quem é mãe quanto quem é filho se identificava com ele (por causa da personagem Dona Hermínia). Há todas as nossas projeções. É como se tivesse morrido uma pessoa que de fato conhecíamos", explica Samantha.

Ela acredita que o tema do luto deveria ser levado para as escolas —que é um ambiente no qual, inevitavelmente, a criança ou o adolescente viverá parte de seu pesar. Professores e demais colegas, com mais conhecimento sobre o assunto, poderiam então acolher o enlutado de maneira mais efetiva.

Já há, segundo Samantha, uma cobrança da Unifesp para que o Proalu gere dados para pesquisa, o que, em se tratando de saúde pública, é sempre importante. Com tantas demandas, a coordenadora espera, em breve, conseguir abraçar mais essa.

Esta reportagem foi desenvolvida em parceria com a Republica.org, organização social apartidária e não corporativa que se dedica a contribuir para a melhoria do serviço público no Brasil, em todas as esferas de governo.