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Origens

As Histórias Que Nos Trouxeram Aqui: um resgate histórico da construção de identidade de pessoas negras


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Preto não saber origem é traço nacional, diz Nara, filha mais velha de Gil

Helton Simões Gomes e Tiago Dias

De Ecoa, em São Paulo e em Salvador (BA)

24/06/2022 04h00

De tanto ouvir a mãe, Belina Aguiar, repetir, Nara Gil, 56 anos, conta a história como se a lembrança fosse dela: ouvindo a vitrola, ela, então com 3 anos, reconhecia a voz do pai cantando "Aquele abraço" e logo emendava um "êÊ êÊ êÊ", que é como ele encerrava a "Domingo no Parque". Naquele momento, a agulha do aparelho lambendo a ranhura dos discos produzia um dos poucos pontos de contato com Gilberto Gil, exilado em Londres durante a ditadura militar, enquanto ela estava prestes a ser levada do Rio a Vitória da Conquista (BA) para viver com os avós paternos.

Hoje, a filha mais velha de Gil é a pessoa a quem a família recorre em busca de memória. Na irmã Bela Gil, por exemplo, ela percebe uma semelhança com o falar da avó. Ainda assim, não há histórias para lembrar anteriores a seu bisavô "Pretos brasileiros não sabem nada de sua origem. Para remontar hoje coisas antigas, histórias do passado, só se você tem uma família que manteve registro... É muita coisa eliminada e escondida. Acabou virando um traço nacional, um traço brasileiro essa falta de identidade."

Junto de Gil e Bela, Nara conta esta e outras histórias no vídeo acima, "Origens: A Música no DNA da família Gil", produzido por MOV, a produtora de vídeos do UOL, em parceria com ECOA, a plataforma do UOL por um mundo melhor, e o Núcleo de Diversidade

Alforriado, diplomado e exilado

Ainda que com detalhes borrados, algumas dessas histórias chegaram aos ouvidos de Nara. Uma delas, contada por uma, dizia que seu bisavô - ou o trisavô - era um escravizado que comprou a própria alforria. Alfabetizado e capaz de fazer contas, ele administrava o negócio do comerciante que era seu dono. Com o dinheiro ganho trabalhando, comprou a liberdade e o arrematou o estabelecimento.

Ter um empreendimento permitiu que a família tivesse acesso a educação. Tanto que o pai de Gil era médico e a mãe, professora.

Nara - Daniel Neri/Arte UOL - Daniel Neri/Arte UOL
Nara Gil, filha mais velha de Gilberto Gil
Imagem: Daniel Neri/Arte UOL

"Até por isso eles saíram de Salvador. Imagina! Concorrer com médicos brancos na capital? Dificílimo. Foram fazer a vida no interior, porque lá precisavam de médicos e professores, e eles eram um casal ideal."

Para resgatar o passado distante, Nara aceitou o convite de ECOA para realizar um exame de DNA que mapeia a ancestralidade genética e indica os locais prováveis de onde vieram seus antepassados. Os relatos deles estão no vídeo "Origens: A música no DNA da família Gil", produzido por MOV.doc, selo de documentários do UOL, em parceria com ECOA, a plataforma por um mundo melhor do UOL, e o Núcleo de Diversidade. A respeito das regiões africanas que pintaram em seu teste, chamou de "um bom mix": Benim (22,7%), Norte da África (12,6%), Uganda (4,8%), Gâmbia (4,1%) e Angola (3,5%). Da parcela europeia (51%) e americana (1,3%), pouca surpresa.

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"É legal fazer esse teste porque dá justamente essa noção de que a gente veio todo mundo de uma fonte, mas que se espalhou. A África foi toda colonizada e fatiada. O povo separado vira um país com um nome, depois com outro nome, mas é tudo um grande saladão."

Mas, para além de um ponto no mapa, Nara queria mesmo era saber como a trajetória ocorreu. "Sangue, na verdade, a gente sabe. Agora, histórica e saber exatamente o que aconteceu é mais difícil de remontar. Esse caminho foi apagado."

Histórias que viraram música

De volta ao passado mais recente, no interior da Bahia, foi com os avós que Nara e a irmã Marília viveram enquanto o pai estava exilado e a mãe, estudando no Rio. Durante esse período, só o conhecia das fotos de revista e da televisão. Já adolescente, foi morar com o pai e pegou gosto pela música. Tanto que foi a primeira a seguir os passos do pai e fazer carreira como backing vocal em sua banda. Dos palcos para a telinha, ela interpretou a DJ Black Boy, na série "Armação Ilimitada", da Globo, entre 1985 e 1988.

"Tem as famílias de médicos, de dentistas, de escritores, de atores. A gente é uma família de músicos." Se quando jovem, ela ouvia os acordes do violão do pai cortando o silêncio da casa, quando se tornou mãe, viu o filho João tomar o lugar do avô.

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Nara, o filho João e o pai Gilberto Gil
Imagem: Daniel Neri/Arte UOL

Naturalmente, algumas das memórias de Nara cruciais para recontar a história da família são atravessadas pela música. Ela estava ao lado do pai em 1979 durante o show dos Novos Baianos, no Teatro Vila Velha, em que ele conheceu Flora Nair Giordano, que viria a se tornar sua esposa no ano seguinte. Naquela época, Gil já havia se separado de Belina e de sua segunda esposa, Sandra.

Em 2017, ela cantava com Gilberto Gil quando, durante um show em São Paulo, ele reconheceu um casal na plateia: Era o chefe dos tempos em que Gilberto Gil era funcionário da Gessy Lever (futura Unilever) e a esposa, sua ex-secretária. Entre 1965 e 1966, Gil se dividia entre a carreira administrativa no escritório e a tentativa de ser músico.

"Depois, no camarim, a ex-secretária lembrou: falou: 'Eu lembro muito de sua mãe, Belina, porque ela ligava no escritório e eu cobria seu pai. Eu dava alguma desculpa, porque ele chegava cansado das noitadas de shows e eu o deixava ele dormir um pouco embaixo da mesa. Ele precisava descansar'."

A árvore genealógica da família de Gilberto Gil

Toda menina baiana

Nara conta todas essas histórias com um sorriso no rosto, mas se orgulha mesmo é de ser a inspiração que o pai tinha na cabeça quando compôs "Toda menina baiana". Não só por ser um dos grandes sucessos de Gil, mas porque ela adora ser baiana. "Sorte grande ter nascido nesse lugar. Você desce aqui na rua, e os pretos e os brancos têm um gingado."

Para ela, a Bahia é o lugar mais representativo da origem brasileira, "que é justamente quando os índios aqui habitavam, chegaram os brancos portugueses e trouxeram os negros africanos".

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Nara em dois momentos; à esquerda, com o avô, José Gil Moreira; à direita, com o pai
Imagem: Daniel Neri/Arte UOL

"A Bahia é exatamente isso em essência. Com toda a tristeza que a gente herda dessa desvalorização, apagamento e invisibilidade dessas das culturas dos povos originários e daqueles povos trazidos da África, mas com toda a alegria que isso causa na gente e nos compõe essencialmente. Sempre digo isso: na Bahia, a gente é feliz"

Neste momento da conversa com Ecoa, Nara deixa aproveita para confidenciar outro segredo da família, desta vez com a vaidade de neta orgulhosa. "Minha avó Claudiana adorava 'Toda menina baiana'. Era a que ela mais gostava. Muito por causa desse trecho da música que fala do Pelourinho, onde se matavam os pretos na época da escravidão", conta ela, imitando o gesto que a mãe de Gil fazia, como se alguém estivesse cortando seu pescoço.

"É isso. A gente tem essa memória dentro da gente. Apesar de não ter estudado cultura africana na escola, ela está aí no nosso sangue, na rua, na nossa música, nas religiões de matriz africana, nos candomblés, rodas de samba, rodas de caboclo. A memória dos pretos foi oficialmente apagada, banida e criminalizada. Tudo isso é muito mais difícil para gente acessar, mas meu pai trouxe isso para o nosso centro, principalmente para a nossa família."