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Não é só 'história de corno': Não Inviabilize doa meio milhão para ONGs

Déia Freitas é idealizadora do podcast Não Inviabilize que, entre uma "história de corno" e uma história de fantasma, aborda causas sociais - Déia Freitas / Arquivo Pessoal
Déia Freitas é idealizadora do podcast Não Inviabilize que, entre uma "história de corno" e uma história de fantasma, aborda causas sociais Imagem: Déia Freitas / Arquivo Pessoal

De Ecoa UOL, em São Paulo (SP)

19/03/2022 06h00

"Minha avó atirou no meu padrasto", "saí com um discípulo do Inri Cristo", "os pais do meu namorado me acusaram de tráfico de drogas" e "um desconhecido invadiu a minha casa e fez cocô no meu quarto" são alguns dos títulos de e-mails que surgem na caixa de entrada de Andréia Freitas. São mais de 10 mensagens diárias com conteúdos que variam dos mais absurdos aos mais assustadores.

Quanto mais chocante a história que ela conta no podcast Não Inviabilize, mais e-mails recebe. "Parece que quanto mais doida a história, mais gente já passou por aquilo ou algo parecido", conta.

Déia Freitas, como é conhecida, é um verdadeiro sucesso. No Spotify, o Não Inviabilize está em sexto na lista dos podcasts mais ouvidos pela plataforma até o momento de fechamento dessa reportagem. Alguns episódios, sozinhos, chegam a ultrapassar 120 mil plays diários.

Mas não é só de histórias malucas que vive o Não Inviabilize. Déia usa sua plataforma não só para dar visibilidade a certos assuntos como a importância do Bolsa Família, Ibama e populações originárias, como também para arrecadar doações "graças ao apoio financeiro dos assinantes do podcast e das marcas que fazem publi nos nossos espaços".

A bola da vez é a ONG Unifavela, um cursinho pré-vestibular criado no Complexo da Maré. Além do projeto, o podcast também vai participar da reforma do espaço físico da Casa Nem, também no Rio de Janeiro, que abriga pessoas LGBTIA+ em situação de vulnerabilidade.

"Vai ser o nosso primeiro apoio financeiro no projeto e, com certeza, o primeiro apoio de muitos!", disse Déia em suas redes sociais.

'Não dá para separar meu ativismo da minha contação de histórias'

Entre uma história de traição e outra — e muitos risos envolvidos, até porque, como a própria Déia diz, "ninguém tem dó de corno"—, a podcaster traz um recado importante: a simples desconfiança de uma traição mata mulheres.

Em 2019, 3.737 mulheres foram vítimas de feminicídio, crime cuja motivação está relacionada à violência doméstica ou ao desprezo pelo sexo feminino. Dentro da própria residência, geralmente assassinadas por parceiros ou outros familiares, 1.246 mulheres perderam a vida no mesmo ano.

O problema do feminicídio, cujos números só vêm crescendo (especificamente 10,6% entre 2009 e 2019, segundo o Atlas da Violência de 2021), costuma ser lembrado pela podcaster, muitas vezes de forma sutil.

"Se eu conto uma história de corno, me certifico de que o cara encarou de uma forma bacana e damos risada sobre isso. Mas tinha muito homem hétero bravo comigo porque eu estava rindo dos cornos. Aí eu precisei explicar que quando recebo uma história que tem a mulher como traidora, eu preciso primeiro ver se ela ainda está viva e se não houve violência. E então conto a história de forma engraçada para desmistificar isso. Afinal, todo mundo já foi corno", diz.

Para além da questão de violência contra a mulher, a podcaster usa o espaço e visibilidade que tem no Não Inviabilize para trazer temas à tona delicados. A discussão muitas vezes se aprofunda no grupo que ela mantém no Telegram para assinantes — e que conta com mais de 53 mil pessoas (depois que o ministro do STF Alexandre de Morais determinou a suspensão do aplicativo no Brasil, não se sabe ainda o que acontecerá com o grupo).

"De repente eu estou contando ali uma história de uma mulher gorda e vamos conversar sobre gordofobia depois no grupo. Mas na narração eu não vou usar esse termo ["gordofobia"] — em vez disso, eu quero mostrar o que aquela mulher gorda sentiu e passou, como foi difícil para ela, para as pessoas entenderem e verem aquilo por um outro ângulo", diz Déia.

Acho que tenho um impacto grande na vida dessas pessoas. Eu tenho um público muito diverso, e isso é muito louco, estou em lugares onde nunca pensei que estaria. Como o que eu digo no podcast é discutido depois, eu não tenho muito controle — mas sei que uma sementinha já foi plantada.

Déia Freitas, podcaster

Até mesmo entre uma publicidade e outra, Déia usa o Não Inviabilize para levar mensagens positivas e de conscientização para seu público de milhões. Uma parceria sua com o Fundo Brasil, uma organização de Direitos Humanos, trouxe ao podcast a história das sementes crioulas e da problemática dos agrotóxicos em áreas de quilombo, por exemplo. "Jamais imaginei que isso acontecia e quis apresentar essa informação", explica.

Outra prova de que Déia não separa seu ativismo de seu podcast foi a contratação de uma assistente de roteiro que deu o que falar nas redes sociais. As especificações eram claras: a vaga era para mulheres negras, pardas ou indígenas e o valor a ser pago por quatro meses de trabalho era R$ 22 mil. E foi só publicar a vaga que os ataques começaram.

"Eu não estou tirando nada de pessoas brancas, só oferecendo uma oportunidade de trabalho, que não é nenhuma loteria, para pessoas pretas, pardas e indígenas. Eu sei que muita gente precisa de trabalho, mas as pessoas brancas acham que têm mais direito à vaga", disse Déia para Universa no momento dos ataques.

Já para Ecoa, depois que a vaga já foi preenchida, ela disse que pretende fazer um banco de talentos com todos os currículos que recebeu de pessoas que seguiram as especificações do anúncio.

O que a gente tem que fazer de mais importante, além de participar das ações, é cobrar quem pode fazer isso virar uma política pública, que são os políticos. Não tem como você ser um ativista sem se envolver com política, nós somos um ser político. Mas muita gente me fala: "Déia, você tem só que contar história, você não tem que se meter em outras coisas", ao que eu respondo: "Gente, eu sou tudo isso. Se eu não for tudo isso eu não consigo contar história, não dá para separar meu ativismo da minha contação de histórias.

Déia Freitas, podcaster

"Tenho 6 gatos e 9 cachorros"

gatinho - Déia Freitas / Arquivo Pessoal - Déia Freitas / Arquivo Pessoal
O gatinho Coentro Nenê, de Déia, faz 'participações especiais' no 'Não Inviabilize'
Imagem: Déia Freitas / Arquivo Pessoal

Deia cresceu em um lar que sempre gostou muito de animais. E, para além da convivência com os bichinhos de estimação, ela via os familiares resgatando animais na rua. Aos 19 anos, tinha chegado sua vez de fazer o mesmo. Foi assim que Lobo apareceu em sua vida.

Lobo era um cachorro "enoooorme" (como enfatiza Déia), que ela resgatou quando estava na faculdade de psicologia. E foi na própria faculdade que ela escondeu os animais que, por vezes, dormiam até na sala do diretor. Isso tudo sem ninguém saber, com exceção de alguns colegas.

Dali para a frente, não parou mais. Em Santo André, cidade do ABC Paulista onde vive até hoje, Déia passou a resgatar animais abandonados na escura Avenida Industrial junto com um tio. "Lá era uma rua onde muitas profissionais do sexo, em sua maioria travestis, viviam. Elas nos ajudavam com os resgates, nos ligando quando alguém abandonava um animal por lá", conta.

O resgate dos beagles

Com o tempo, Déia acabou se envolvendo ainda mais com a causa animal. Em 2013, conheceu um grupo de protetoras durante um resgate e, em seguida, participou com elas de uma das ações pelas quais passaria a ser mais conhecida, principalmente na internet.

Tratava-se do resgate de cães da raça beagle usados em testes laboratoriais em São Roque, interior de São Paulo, onde 179 animais foram resgatados. "O que vi ali foi um depósito de cães, um lugar imundo, abafado, fétido, com cachorros amontoados e feridos", escreveu Déia em um relato detalhado que publicou na internet sobre o dia.

Hoje a podcaster não atua tanto na linha de frente da causa animal, mas ainda resgata bichos que encontra na rua, castra e os entrega para uma rede de apoio que os destina a hotéis de animais pagos por voluntários ou a lares temporários. "As ONGs já estão lotadas", explica. O apoio também é financeiro, pois "só quem atua na proteção de animais sabe o quão difícil é comprar uma ração, pagar uma vacina e castração", conta.

Além disso, Déia tem um projeto que deve sair do papel em 2022 para ajudar ainda mais os animais abandonados. A podcaster lançará uma plataforma — primeiro como um site e depois como aplicativo — que irá mapear todas as políticas públicas para os animais de rua existentes em cada cidade do país. Além disso, a ferramenta contará com um espaço para adoção. Uma parcela dos recursos para isso veio de um financiamento coletivo. A maior parte, no entanto, saiu do seu próprio bolso.

Beagle em cativeiro - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
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Imagem: Getty Images/iStockphoto

"A causa da proteção animal me abriu outras portas para outros trabalhos sociais", conta. Em sua vida de ativista, ela atua há cerca de 20 anos com o padre Júlio Lancellotti na causa das pessoas em situação de rua. A ONG Mulheres da Luz, que busca promover a cidadania e a garantia de direitos humanos das mulheres em situação de prostituição, também recebe o seu apoio. "Sou uma pessoa da classe C que vê muitas situações acontecendo, então eu vou buscando agregar várias causas e quando vejo já estou em um monte de projeto", diz.