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Como funciona transplante de órgãos? Mais de 48 mil pessoas aguardam doação

Caixa usada para transporte de órgãos para doação em centro de Salvador, na Bahia - Getty Images
Caixa usada para transporte de órgãos para doação em centro de Salvador, na Bahia Imagem: Getty Images

Giacomo Vicenzo

Colaboração para Ecoa, de São Paulo (SP)

15/03/2022 06h00

Entre as diversas coisas que dificilmente conseguimos prever em nossas vidas, a morte é uma delas — a certeza é que ela virá em algum momento. Falar sobre o tema é importante, quebrar tabus acerca de nossa finitude, mas também sobre nossa capacidade de ajudar o próximo. A doação de órgãos é uma dessas conversas importantes e sobre a qual falamos pouco. pode se tornar uma questão que dará a chance de outras pessoas sobreviverem ou continuarem as suas vidas de maneira mais confortável.

No Brasil, a recusa para doação de órgãos foi de 42% em 2021, de acordo com os últimos dados da ABTO (Associação Brasileira de Transplante de Órgãos). São 2.642 pessoas que poderiam doar seus órgãos, mas a recusa familiar impossibilitou o transplante. Enquanto isso, mais de 48 mil pessoas esperam por algum tipo de doação de órgãos.

Pensando nisso, Ecoa conversou com especialistas para entender melhor como funciona a doação de órgãos, quando ela acontece e outras questões acerca do tema.

O que é transplante de órgão, como e quando é feito?

"O transplante de órgãos é um procedimento cirúrgico em que um ou mais órgãos de uma pessoa com uma doença grave, sem possibilidade de melhora com outros tipos de tratamentos, é substituído por outro ou parte de um órgão de um doador", diz José Eduardo Afonso Júnior, coordenador Médico do Programa de Transplantes do Hospital Israelita Albert Einstein.

O médico ainda explica que o procedimento pode ser feito tanto de doadores vivos como de doadores com morte encefálica (cerebral). "Em vida pode ser feita apenas para rim, parte do fígado ou dos pulmões", esclarece Afonso Júnior. Já quando a morte ocorre por parada cardíaca ou respiratória só é possível doar córneas, peles e ossos.

A morte cerebral é quando não há mais nenhuma função cerebral e o estado é irreversível. O diagnóstico segue uma série de procedimentos e precisa ser feito por mais de um médico.

Diferente do coma, a morte cerebral não tem volta. Uma vez diagnosticada, não há chance que o paciente volte à vida e os órgãos são mantidos funcionando apenas pelo uso de aparelhos. A Lei nº 9.434/2017, conhecida como Lei dos Transplantes, assegura que a doação de órgãos só pode ser feita depois de constatada a morte encefálica.

"É importante que haja clareza para a família que morte encefálica é igual à morte, não há possibilidade de reversão do quadro. Para que haja diagnóstico de morte encefálica, é necessária uma avaliação clínica minuciosa, por profissionais habilitados para fazer esse diagnóstico, dentro de critérios definidos pelo Conselho Federal de Medicina, além de exames confirmatórios", esclarece Afonso Júnior.

"Não existe possibilidade de se propor a doação de órgãos a uma família se não houver certeza de que o potencial doador está em morte encefálica. Esse diagnóstico é revisto por mais de um profissional e também por profissionais de fora da instituição em que está o potencial doador. O protocolo para diagnóstico de morte encefálica no Brasil é 100% confiável", completa tranquilizando.

Como funciona a fila de espera do transplante de órgãos?

A de fila de espera para quem precisa receber uma doação funciona de acordo com o grau de gravidade. Mas não faz nenhuma diferenciação entre localidade ou classe social do paciente que precisa do órgão. A cirurgia do transplante e o tratamento podem ser feitos por meios particulares. No entanto, todos estão sujeitos à fila pública de órgãos.

"A fila de transplante é pública, independentemente de qualquer característica social do paciente. Seja pelo sistema público ou não. Então, não há qualquer diferenciação nesse sentido. O sistema de distribuição de órgãos oferece para todos a mesma oportunidade e chance de conseguir transplantar", explica o médico nefrologista Gustavo Ferreira, presidente da ABTO (Associação Brasileira de Transplante de Órgãos).

Além disso, os dados inseridos na fila não identificam quem são os pacientes de meio particular ou da rede pública, e mais de 90% dos procedimentos são feitos pelo SUS.

Em casos de pacientes que residem em um Estado onde não há a especialidade de transplante de que necessite, a rede pública oferece o custeio completo em outra cidade e estado por meio do TFD (Tratamento Fora do Domicílio).

"O Brasil possui o maior programa público de transplantes do mundo. O controle das listas de espera é feito pela Central Nacional de Transplantes, órgão vinculado ao Ministério da Saúde, com apoio das Centrais Estaduais de Transplantes", comenta Afonso Júnior.

Ele reconhece, que apesar das dificuldades relacionadas à gestão da lista de espera em um país com dimensões continentais como o Brasil, a eficiência do Sistema Nacional de Transplantes é reconhecida internacionalmente. "Se há algo que os brasileiros podem se orgulhar é a seriedade e competência com que o SUS trabalha em relação à doação de órgãos e às atividades transplantadoras", acredita o médico.

Como se tornar doador de órgãos e qual o papel da família no processo?

Mesmo que uma pessoa se conscientize sobre o tema e já tenha pensado em ser doadora de órgãos, a decisão final será sempre de sua família no momento da constatação da morte cerebral.

"O doador falecido (em morte encefálica), em geral, sofreu um evento trágico e inesperado levando-o à morte. Uma realidade extremamente dolorosa à família que, no momento de dor e sofrimento, é acolhida e entrevistada em relação à intenção de doar os órgãos de seu ente querido", explica Afonso Júnior.

"Na legislação brasileira, é necessário que a família autorize a doação de órgãos. Pois não há documentos criados em vida que permitam que os órgãos sejam extraídos sem autorização da família de uma pessoa em morte encefálica", completa o médico.

Para José Huygens Garcia, chefe do serviço de transplante de fígado do Hospital Universitário da Universidade Federal do Ceará e ex-presidente da ABTO (2020-2021), trabalhar algumas questões da importância do transplante podem ajudar a família a decidir pelo procedimento depois da morte cerebral constatada.

"Geralmente os acidentes com morte encefálica têm um sofrimento da família. Mas nessa hora da entrevista, esse sofrimento pode ser amenizado pela doação de órgãos sabendo que aquela morte não será em vão. Vai salvar alguém que precisa de um coração, tirar uma pessoa da hemodiálise ou ainda fazer com que pessoas voltem a enxergar", explica o médico.

"Essas questões podem amenizar esse momento, mas quem decide no final é a família. Por isso, é importante que todo cidadão informe esse desejo em vida aos seus familiares", reforça Garcia.

Qual a importância da conscientização sobre o transplante?

Apesar da recusa de mais de 40%, o Brasil ainda ocupa o 23º lugar de doadores efetivos por milhão de habitantes (15,8 por milhão) e é o quarto em números absolutos de transplantes renais, de acordo com os últimos dados da ABTO. EUA e Espanha figuram em primeiro e segundo lugar, com 38 e 37,4 doadores por milhões de habitantes, respectivamente.

Para o presidente da ABTO, o alto índice de recusa ainda se deve à falta de informação. "O Brasil tem elevada taxa de sucesso de transplantes e temos milhares de pessoas aguardando pelo órgão, mas a desinformação ainda é um problema", acredita.

Garcia vai ao encontro das afirmações do colega e afirma que essa é realmente uma forma de dar uma nova chance aos que esperam. "O transplante é o último tratamento para curar um órgão, quando não há mais o que fazer, e eles realmente podem salvar vidas. As pessoas que estão na fila do transplante, na maioria das vezes terão a cura com esse procedimento", explica.

É no caminho da conscientização que o projeto de Lei Tatiane (PL 2839/2019) luta pela proposta de inserir o tema de doação de transplante de órgãos em escolas e faculdades do Brasil, a fim de conscientizar estudantes em fases diferentes da vida.

"Enquanto a sociedade não entender que é essencial a doação para que esses pacientes possam ter a chance de continuar vivendo, vamos manter esse número elevado de negativas familiares", acredita Ferreira.